Para conhecer profundamente a pecuária brasileira e os produtos que poderia levar para seu país, o sueco Johan Axenbjer, empresário do ramo de alimentos, se mudou de mala e cuia para o Brasil. Durante três anos, de 2007 a 2010, ele visitou fazendas, conheceu o gado no pasto, estudou sistemas de criação e esteve em muitos frigoríficos. Tudo isso para garimpar no mercado o que encontrasse de melhor: carne bovina macia e suculenta. Na Suécia, Axenbjer é um dos donos da Norvida, trader com sede em Estocolmo, hoje a principal importadora de alimentos para  abastecer de  carne grandes redes de supermercados locais, como a ICA e a Coop, além de varejistas da Finlândia e da Noruega. A média de compra no Brasil tem sido de duas mil toneladas de carne bovina, por ano, apenas de cortes do traseiro do boi, como alcatra, filé-mignon e a ponta de contrafilé para a preparação do bife ancho, um prato muito apreciado nas churrascarias. “Precisamos de carne de qualidade de animais totalmente criados no pasto, e vamos buscar onde tiver”, diz Axenbjer, que vem ao Brasil a cada dois meses. Para abastecer seus clientes, a Norvida mantém dois escritórios de venda na Europa e um de compra em São Paulo. Em 2013, a fatura foi de US $ 120 milhões. João Schimansky Netto, gerente de compras da Norvida no Brasil, diz  que interessa à empresa apenas a carne de um tipo de animal: o castrado, jovem e criado no pasto. O problema é que, nas últimas décadas, esse tipo de bovino está cada vez mais raro no mercado. A ideia dos criadores de gado de que, ao melhorar a genética bovina os pastos e o manejo, eles conseguiriam abater todos os animais sem castrar nenhum, e com qualidade, não prosperou.

Nos frigoríficos, a média de idade de abate de machos é superior a 30 meses, já avançada, para a qual não se deveria abrir mão da castração, como ocorre em países que são grandes produtores de carne, entre eles Estados Unidos, Austrália e Argentina. O quase desaparecimento da castração, para os cerca de 25 milhões de bois abatidos todos os anos no País, trouxe consequências negativas para a qualidade da carne, que perdeu em maciez, tempo de prateleira e ganhou uma coloração vermelho-escura. As mudanças desagradaram  a clientela. “Nós estamos penando para encontrar carne de castrados, a mercadoria está escassa”, afirma Schimansky Netto. “Quem trabalha com nichos de mercado mais exigentes, como redes de hotéis, está riscando a carne brasileira do seu cardápio.” Na Suécia, por exemplo, o Brasil já deixou de ser o principal fornecedor de carne, posto que ocupou até 2009. Hoje, são exportadas para o mercado suíços 1,4 mil toneladas, 6,5% a menos que naquela época. “Na Noruega só se pedia a carne brasileira”, diz Schimansky Netto.” Hoje não mais.” Nesse país, a queda das exportações foi de 1,3 mil toneladas, em 2005, para 138 toneladas atualmente. Até mesmo a carne uruguaia, que era pouco conhecida no cenário internacional, já abocanha uma fatia do mercado. Em 2005, a Norvida comprava 50 toneladas de carne do Uruguai. Hoje são mil toneladas, por ano.

O fato é que a carne brasileira que vai para a Europa não está tão macia como antes. O consumidor europeu sentiu no garfo a diferença e, como resultado, a commodity perdeu um pouco do seu prestígio. Rodrigo Hakagi Sato, gerente de exportação para a Europa da JBS, explica que, por muito tempo, o câmbio favorável foi um aliado de peso da carne brasileira na disputa com os concorrentes lá fora, mas hoje não dá mais para contar com essa mãozinha. “Como os preços estão muito equivalentes no mercado internacional, precisamos de qualidade para poder brigar lá fora”, diz. Por exemplo, uma tonelada de contra-filé, que no Brasil sai por US $ 17 mil, também pode ser comprada na Argentina ou Austrália.

Para Fabiano Tito Rosa, gerente executivo de compra de gado do grupo Minerva, se o pecuarista não voltar a castrar os animais, o Brasil perderá cada vez mais espaço no comércio europeu, que sempre pagou mais pelo produto. “O Brasil está na contramão da tendência mundial”, diz Tito Rosa. “Só aqui temos o boi inteiro.” É por isso que a carne dos Estados Unidos e Austrália está cada vez mais presente na Europa. Esse nó da pecuária precisa ser desatado também no mercado interno, que consome sete milhões de toneladas de carne, por ano, ante 1,6 milhão de toneladas exportadas. Cá como lá, a qualidade da carne  começa a ser uma exigência cada vez maior dos consumidores. O empresário Marcelo Pires Pinheiro, da MG Entrepostos de Carnes, de São Paulo, maior distribuidor do produto na capital e Grande São Paulo, afirma que só trabalha com boi castrado. E dá suas razões: “Por ter uma carne mais dura e de coloração mais escura, o cliente acha que carne de boi inteiro é velha.” Pinheiro diz que já tentou comercializar a carne de bois inteiros, mais facilmente encontrável nos frigoríficos, mas teve de voltar atrás. “Houve muita reclamação”, diz. A MG abastece quatro mil estabelecimentos, entre supermercados, casas de carne e açougues próprios. Semanalmente, são compradas 20 carretas, que comportam 110 bois abatidos, o que equivale a R$ 16 milhões por mês, ou R$ 192 milhões por ano. Mas, afinal, por que existem diferenças na carne entre bois inteiros e castrados? A resposta para essa questão está no que os especialistas chamam de “carne escura” ou DFD, sigla em inglês para dark, firm and dry (escura, dura e seca) característica associada a carcaças bovinas que apresentam pH inadequado, acima de 5,8, em decorrência do estresse causado no préabate. A coloração é vermelho quase vinho e o aspecto, oleoso. “Isso acontece  graças à retenção de água nas células da fibra muscular”, diz Pedro de Felício, professor da Unicamp e um dos maiores especialistas em qualidade de carne. Essa  carne não causa qualquer dano à saúde, mas tem vida de prateleira mais curta, de apenas 30 dias, ante até 70 dias do produto normal resfriado. A incidência de carne DFD tende a ser maior em animais inteiros, mais agitados e agressivos do que os castrados e,  portanto, mais propensos aos efeitos do estresse. “Eles montam uns nos outros para estabelecer hierarquia, problema que se agrava nos currais dos frigoríficos, por causa do pouco espaço, no  pré-abate”, diz Felício. Segundo ele, o problema pode ser ainda maior em animais jovens, normalmente mais reativos. Nos Estados Unidos, a estatística de carne DFD é baixa, de apenas 3%. Na Europa, estudos recentes indicam 8% de “carne escura” no total de animais abatidos. No Brasil, não há estatísticas oficiais sobre o problema, mas a indústria aponta para  números preocupantes.

Segundo o frigorífico Minerva, cerca de 30% das carcaças apresentam pH acima de 5,8. Os dados da JBS mostram que em algumas regiões esse percentual chega a 40%. “A carne sempre será um produto nobre, e com regras implacáveis de produção”, diz Felício.“Ao mesmo tempo, de uma delicadeza artesanal; afinal, estamos lidando com alimento.”