23/12/2020 - 11:08
Católico, ex-seminarista, o mineiro José Maria Mayrink, de 82 anos, fez do jornalismo uma profissão de fé. A trajetória dele como repórter começou em 1961, quando deixou o seminário para dar aulas de latim e português e colaborar no semanário Jornal do Povo, da cidade de Ponte Nova, interior de Minas Gerais. No ano seguinte, em Belo Horizonte, trabalhou no jornal Correio de Minas e iniciou o curso de jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais, estudo que concluiu mais tarde na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.
Desde então, a reportagem o acompanhou pela vida, recebeu os prêmios mais importantes da imprensa brasileira, como o Prêmio Esso (1971), e chegou ao extremo da profissão de um operário da informação: entrevistou um santo. É de Mayrink a reportagem publicada no Estadão, em 14 de outubro de 2018, que dá a notícia da canonização de dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, na América Central, tornado santo pelo papa Francisco em cerimônia em Roma.
Mayrink conhecia bem o novo santo. Havia entrevistado o arcebispo no dia 21 de março de 1980, uma sexta-feira, acompanhado por dois colegas, um americano, do Dallas Times Herald, e um alemão, da agência de notícias DPA.
No meio de um conflito político que derivou para uma matança no país, com 75 mil mortos em 13 anos de guerra civil, o repórter foi logo ao cerne da crise: “O senhor tem medo de morrer?”, perguntou ao líder religioso salvadorenho. Três dias depois da entrevista, no dia 24, uma segunda-feira, 18h30, dom Óscar Arnulfo Romero Galdamez, então com 62 anos, foi assassinado com um tiro no peito quando celebrava uma missa, disparo feito por um pistoleiro a mando de um líder da extrema-direita local.
Na cobertura que fez da canonização do Santo Óscar Romero, em Roma, Mayrink recorda o episódio do crime em texto em primeira pessoa sob título “Eu entrevistei um santo”, acompanhado da reprodução da página do Estadão com o relato da morte do “Mártir das Américas” – como o arcebispo foi nomeado na Igreja Católica por ter dado a vida em defesa dos direitos dos pobres e perseguidos.
Mayrink morreu na madrugada desta quarta-feira, 23, em decorrência de complicações de uma leucemia. O velório, reservado a poucas pessoas em função da pandemia de covid-19, está previsto para começar às 15h, no Cerimonial Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. Em seguida, o corpo será cremado.
O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor de Oliveira Azevedo, classificou Mayrink como “um homem de virtudes” e uma “referência para muitas gerações de jornalistas, por seus textos sempre brilhantes, precisos, capazes de emocionar, sem recorrer a sensacionalismos”.
Em nota, afirmou:
“De modo especial, Mayrink cobriu com brilhantismo os principais acontecimentos da Igreja Católica, sempre com independência, conquistando a admiração e o respeito do clero, de religiosos, de teólogos e de muitos evangelizadores leigos. Mineiro, foi seminarista, mas a sua vocação verdadeira era o jornalismo, que abraçou com amor e com irrenunciável fidelidade a princípios éticos. Guardo na memória o seu modo respeitoso e objetivo de entrevistar, sua sinceridade e clareza, capazes de conquistar a confiança de seus entrevistados. A sua trajetória profissional, sustentada por um humanismo singular, é selo de qualidade do jornalismo brasileiro. Sentiremos muito a sua ausência, a sociedade perde o olhar sensível de nosso já saudoso José Maria Mayrink, sempre traduzido em precisas e belas palavras. Rezo para que o bom Deus o acolha, dando-lhe o merecido descanso.”
Família
Natural de Jequeri, na Zona da Mata, a 730 quilômetros de São Paulo, casado com Maria José Lembi Ferreira Mayrink, pai de Cristina, Mônica, Luciana e Juliana, Mayrink nasceu em julho de 1938, filho de médico e de mãe professora, como conta o livro Solidão, de 2014, pela Geração Editorial.
Com enorme tristeza, a família informou que a leucemia avançou muito nos últimos dias. “Lutou como um guerreiro. Descansa agora como um anjo. Por toda a sua generosidade, caráter e fé, temos a certeza de que hoje é dia de festa no céu!”
Aos 13 anos, entrou no seminário de Mariana, no interior de Minas, depois foi transferido para o santuário do Caraça, onde completou o colegial e para o qual, sempre que podia, retornava com a família para curtir o sossego da reserva natural e as visitas do lobo guará que costuma passear à noite pelo santuário.
Apreciador de uma boa prosa, o jovem Mayrink foi depois para Petrópolis (RJ), onde fez filosofia e também dois anos de teologia. Nessa época, 1960, escreveu seu primeiro livro, “Pastor e Vítima”, usando o pseudônimo de Augusto Gomes, nome de família de sua mãe.
É autor de diversos livros:
– Solidão (EMW, 1983)
– Filhos do Divórcio (Paulinas, 1984),
– Anjos de Barro (EMW, 1986),
– 3 x 30 – Os Bastidores da Imprensa Brasileira (Best Seller, 1992), com Carmo Chagas e Luiz Adolfo Pinheiro
– Vida de Repórter (Geração Editorial, 2002)
– 1968 – Mordaça no Estadão (Editora do Grupo Estado, 2008)
Anjos de Barro, de 1986, com prefácio de Henfil, é dedicado ao pai, José Eduardo Mayrink. “O título é ótimo. Me deu até inveja do Mayrink, aquela inveja que todo criador profissional tem, quando um colega acerta o alvo. Mas não vou fazer um prefácio, este livro dispensa apresentações”, escreveu Henfil (1944-1988) sobre a obra.
Em Solidão, de 1983, reeditado pela Geração Editorial em 2014, pelo qual tinha carinho especial, reuniu histórias publicadas numa série de reportagens feitas em 1982 para o Estadão sobre o personagens que viviam o dilema de uma vida solitária.
Na longa carreira, que teve os “50 anos de contribuição ao jornalismo brasileiro” homenageados em 2013 em solenidade no Estadão, Mayrink colecionou coberturas nacionais e internacionais de casos dramáticos desde os anos 70. Como mostra no livro Vida de Repórter, de abril de 2002, lançado durante a 17ª Bienal do Livro, um balanço de 40 anos de profissão, foi ele o encarregado de acompanhar no Chile, em 1973, o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende.
Mayrink cobriu o fato para o Jornal da Tarde, do Grupo Estado, com seu colega, Clóvis Rossi (1943-2019), à época escrevendo para o Estadão. Na viagem, reportou também o enterro do poeta Pablo Neruda, que terminou por ser a primeira grande manifestação pública chilena contra o ditador Augusto Pinochet.
No livro sobre a vida de Carlos Marighella, o jornalista Mário Magalhães conta que Mayrink foi o primeiro repórter a chegar à cena do assassinato, ocorrido na Alameda Casa Branca, em 1978, quando o militante revolucionário foi morto a tiros numa campana preparada por agentes da repressão brasileira. Sempre preocupado com o rigor da informação, divertia-se recordando da lição aprendida no dia no qual, ainda um novato na lida, escreveu um texto chamando Pelé de “Joaquim Arantes do Nascimento”, memória que está no livro Vida de Repórter.
Referência entre jornalistas, particularmente os especializados em religião, cobriu encontros e reuniões dos principais líderes católicos, como aquele que elegeu Bento XVI, em 2005, e a cerimônia de beatificação do polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), em 2011. Em dezembro de 2008, nos 40 anos da escuridão do AI-5, lançou o livro-reportagem Mordaça no Estadão, sobre a censura nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, no período de dezembro de 1968 a janeiro de 1975.
“Mayrink foi uma pessoa excepcional, uma referência de caráter e competência para todos jornalistas, de várias gerações. Nos sentimos privilegiados de ter tido ele como ele colega por tantos anos no Estadão“, disse o diretor de jornalismo do Estadão, João Caminoto.
Durante a vida nas redações pelas quais passou, foi também editor. Mas gostava mesmo era do contato direto com as fontes de informação em campo. Testemunha profissional de seu tempo, sempre com o olho apurado da coleta de dados e informações para os leitores, defendia a máxima segundo a qual “lugar de repórter é na rua”.
Habituado aos relatos, em suas reportagens e livros cultivava o cuidado com as pessoas – ultimamente pensava numa forma de trabalhar no apoio a refugiados -, não se esquecia de emoções vividas quando em visitas pessoais a lugares históricos de referência para sua fé católica. Recordava-se que ao chegar aos locais sagrados em Israel foi tomado de emoção especial. Sentimento que também o dominava ao lembrar do encontro com o trágico local da matança dos judeus no campo de concentração nazista de Auschwitz, cujo texto, publicado no Estado, escreveu de memória, sem consultar anotações.