01/10/2015 - 13:00
S e há algo que a uruguaia Ana Maria Peralta Ottonello desconhece é rotina. A agronôma, com mestrado no Brasil pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba (SP), pouco permanece na sede da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em Roma, na Itália, onde desde 2010 ocupa os cargos de diretora de implementação de políticas da instituição e de oficial de desenvolvimento de capacidades da Convenção Internacional para Proteção dos Vegetais (CIPV). Sua missão é andar pelo mundo procurando alinhar as políticas globais de proteção fitossanitária com as praticas dos diferentes países. Em entrevista exclusiva à DINHEIRO RURAL, Ana Maria diz que seu principal desafio é criar um sistema eletrônico global de certificação fitossanitária, ferramenta que pode facilitar o comércio internacional de commodities. “É um grande desafio acabar com os certificados fitossanitários de papel e implementar um sistema mais seguro, rápido e barato”, diz.
DINHEIRO RURAL – Atualmente, qual é a tarefa mais importante da Convenção Internacional para Proteção dos Vegetais (CIPV)?
Ana Maria Peralta Ottonello – Esse Tratado, subscrito por 182 países, desde a década de 1980, tem por objetivo criar normas comuns que protejam seus membros da introdução e da dispersão de pragas nas lavouras, além da cooperação no combate em conjunto das ameaças já existentes. Qualquer país pode sofrer um ataque feroz de pragas nas lavouras. Isso não mudou. Por conta disso, nossa principal tarefa, hoje, é padronizar e alinhar os instrumentos internacionais para que o comércio seja mais seguro e rápido do ponto de vista fitossanitário.
RURAL – Quais são esses instrumentos ?
ANA Maria – Estamos empenhados na implantação da certificação fitossanitária eletrônica. Além de ser uma ferramenta fundamental para o intercâmbio entre os países, facilitando o comércio internacional, ela é muito mais segura, rápida e barata que o sistema atual. É uma ideia que ainda não foi implantada, mas está bem desenvolvida. Para que ela aconteça, a CIPV precisa de uma verba de cerca de US$ 2 milhões. Com esse investimento, que é pequeno, diante dos enormes benefícios que pode gerar, é possível acabar com o certificado fitossanitário de papel, vigente na maior parte dos países, e fazer toda a migração de dados para um sistema eletrônico único.
RURAL – Quais os principais ganhos com essa central?
ANA Maria – Com todos os dados armazenados em um único lugar, torna-se mais fácil os acordos entre os países. Hoje, como não há esse sistema, nos acordos bilaterais cada um deles define suas próprias regras. E, muitas vezes, há regras diferentes de um acordo para outro, para coisas iguais. A certificação eletrônica também é uma forma de não prejudicar os países menos desenvolvidos e descapitalizados, que em geral não possuem muitos recursos para investir em tecnologias da informação.
RURAL – Apenas a tecnologia é capaz de integrar todos os países num sistema de proteção vegetal?
ANA Maria– A construção de um sistema central, no qual todos os países estejam integrados, tem como base uma quantidade enorme de procedimentos para segurança. Uniformizar linguagens faz parte das economias globalizadas. Esse é o grande objetivo da CIPV e, por isso, estamos contando com a adesão das indústrias do agronegócio, que lidam direta e indiretamente com a produção no campo, bem como das associações de produtores, de importadores e de exportadores. São eles que vão garantir a implantação do sistema eletrônico de defesa vegetal e também o seu financiamento. Os países mais desenvolvidos podem implantar um sistema de certificação eletrônico, como a Austrália, a Nova Zelândia e um grande número de países da Europa já estão fazendo. No entanto, em muitos países em desenvolvimento isso é impossível sem o apoio externo.
Blindados: Austrália, Nova Zelândia e Chile são os países mais protegidos contra pragas e doenças
RURAL – Quais outras ações estão no radar da CIPV?
ANA Maria – Com a certificação eletrônica queremos construir uma central de armazenamento das informações coletadas nesse processo. Para isso, já está em andamento um programa piloto de vigilância mundial de pragas. Com o programa é possível fazer uma listagem e o monitoramento de todas as pragas já conhecidas e onde elas atuam. Hoje, sem um programa mundial de vigilância fitossanitária não há informação estruturada para regulamentar com segurança o comércio internacional. Sem essa ferramenta global também fica muito difícil fazer análises de riscos. Teremos muitas mudanças, nos próximos anos, e os países precisam estar preparados para serem menos regulamentadores e mais integradores.
RURAL – Os países estão, de fato, muito vulneráveis aos ataques de pragas nos dias atuais?
ANA Maria – Há normas internacionais que os países devem seguir para minimizar o risco de sofrer um ataque de pragas, mas a possibilidade de ocorrência existe e não é exagero ficar em alerta constante. As oliveiras centenárias do Sul da Itália, por exemplo, que têm problemas de manejo muito graves, vêm sendo atacadas por uma bactéria que causa perdas enormes de produção. Estão culpando a Costa Rica de ter enviado plantas de cafés ornamentais contaminados para a Europa, dentro de acordos bilaterais. Agora, a União Europeia (UE), que havia proibido o uso de agroquímicos nas oliveiras, mas que aprovou a entrada do café ornamental, vai financiar a erradicação de 500 mil árvores.
RURAL – A FAO tem monitorado os impactos das pragas em países menos desenvolvidos?
ANA Maria – Sim. Os impactos com o surgimento de novas pragas são gigantescos. Segundo alguns estudos, em alguns países da África, que sofrem com problemas de segurança alimentar, a introdução de uma praga poderia reduzir em 70% a produção de grãos e em 30% a produção de mandioca, alimento do qual dependem 60% dos cerca de 1,1 bilhão de habitantes daquele continente. Isso pode levar à morte, por falta de alimentos, milhões de africanos. Em Moçambique, por exemplo, o surgimento da praga conhecida como o amarelecimento letal do coqueiro, que extermina a planta num período de até seis meses, acabou com a produção da fruta no país, levando ao fechamento das indústrias do setor.
RURAL – No Brasil, quais culturas estão mais suscetíveis a pragas?
ANA Maria– A própria doença do coqueiro é uma ameaça, mas, em se tratando de segurança alimentar, qualquer praga que possa afetar a produção de arroz, de mandioca ou de árvores frutíferas resultaria em grandes impactos para a economia.
Prejuízo: plantação de coco, em Moçambique, atacada pela praga conhecida como amarelamento letal do coqueiro
RURAL – Quais são os países que possuem os melhores sistemas de defesa vegetal?
ANA Maria – Pela própria geografia, os países mais protegidos são aqueles comparados a grandes ilhas, como a Austrália e a Nova Zelândia, que também possuem sistemas de defesa muito bem estruturados e eficientes. O Chile também é eficiente, além de ser cercado pela cordilheira dos Andes, de um lado, e pelo oceano Pacífico, do outro. As barreiras naturais facilitam muito o trabalho de defesa vegetal.
RURAL – Entre os demais países, quais os mais vulneráveis?
ANA Maria – Além da África, os mais frágeis são as pequenas ilhas do Pacífico e do Caribe. A Índia, que é uma grande exportadora de frutas para a UE, também possui um sistema de defesa vegetal frágil. Já a China é uma incógnita, por não revelar absolutamente nada sobre suas regras. Mas é de conhecimento geral que o sistema de defesa fitossanitária dos chineses é fraco. Os países ricos também estão nessa conta. A Inglaterra, por exemplo, embora siga as mesmas regras da UE, tem visto suas lavouras invadidas por pragas, nos últimos cinco anos.
RURAL – Por que é tão difícil lidar com pragas agrícolas?
ANA Maria – Porque o número de pragas que atacam os vegetais é imenso e todos os dias surgem novas ameaças. É muito diferente das doenças que atacam os animais, que são em número muito menor , cerca de 15 ameaças do gênero, em todo o mundo. Além disso, as pragas que atacam os vegetais são organismos vivos, que se comportam de modo diferente quando mudam de ambiente, de tal forma que a ciência não consegue fazer uma análise de risco global e precisa para todas elas.
RURAL – Qual a importância da provável escolha de 2020 como o Ano Internacional da Defesa Vegetal?
ANA Maria– Queremos, com essa data, ampliar o nível de informação da população sobre a importância da vigilância vegetal e colocar em pauta temas de interesse global. Também queremos mostrar para os órgãos e as agências governamentais de regulamentação que prevenir é melhor do que curar. A proposta apresentada pela Finlândia foi votada e aprovada em maio, pela FAO, de maneira extraordinária, e apoiada por todos os países da UE, além de outros 14 países, entre eles o Brasil e a Argentina. Agora, a medida segue para aprovação na Organização das Nações Unidas (ONU). Com a ONU no jogo, as atividades em 2020 podem ganhar uma dimensão maior e mais consistente .