10/01/2021 - 7:10
Logo no comecinho da pandemia, a professora de educação infantil Amanda Gomes Pinto tomou um susto quando viu na TV uma reportagem sobre uma dessas ações solidárias que distribuem comida para grupos sem-teto no centro de São Paulo. Entre os pedintes, reconheceu um dos seus alunos da rede municipal, o irmão dele, a mãe e o padrasto.
Amanda recebeu a imagem como uma porrada. Pensou logo nas escolas fechadas desde março pela covid-19 e em estudantes sem acesso a merenda. E em como poderia oferecer aulas à distância ou cobrar por atividades, se a preocupação de tantos meninos e meninas de 4 a 6 anos era ter ou não comida em casa durante a quarentena: “Cara, o que estamos fazendo pelas nossas crianças?”.
O choque de realidade virou uma mobilização sem precedentes nos mais de 20 anos que a professora já dedicou ao ensino público – ela tem 46. Em contato com colegas, Amanda ajudou a articular uma rede de cerca de 25 pessoas, para distribuir doações a famílias de quatro escolas municipais do centro.
Desde abril, a iniciativa conseguiu converter R$ 63,3 mil (parte do dinheiro arrecadado; parte, do próprio bolso) em 1.367 cestas com itens de alimentação e limpeza. Além de um saquinho de milho de pipoca – um afago na criançada.
“Na pandemia, as escolas acabaram virando grandes centros de solidariedade”, relata a professora, que mantém contato diário com parte dos estudantes pelo WhatsApp. O passo inicial do grupo foi tentar localizar os alunos, um a um, e mapear a situação de vulnerabilidade.
“Muitos pais tinham vergonha de dizer que o dinheiro acabou”, afirma. “O primeiro pedido direto veio de uma mãe chorando. Ela até havia recebido a cesta, mas estava sem gás para cozinhar arroz e feijão.”
Em junho, o mês mais crítico, o grupo chegou a atender quase 240 famílias. Nos demais, a média foi 180. Entre as entregas, docentes continuaram preparando atividades online, como contação de histórias e rodas de conversa. “Às vezes, só há um celular para a casa inteira e o aluno só consegue ver a proposta de aula às 22 horas”, descreve.
Educação integral
Amanda trabalha na Escola Municipal Monteiro Lobato, que fica no Parque Buenos Aires, em Higienópolis, região central de São Paulo. Apesar de encravada em uma das áreas mais ricas da cidade, lá estudam filhos de babás, porteiros, diaristas, cuidadores de idosos, marreteiros, catadores de latinha – que ali podem ficar mais perto do trabalho dos pais. Entre eles, há moradores de Sapopemba, Americanópolis e até de Francisco Morato, na Grande São Paulo.
O perfil não é muito diferente nas outras escolas que encamparam a ação, como Patricia Galvão, Gabriel Prestes e Armando de Arruda Pereira. Em geral, são filhos de quem já ganhava pouco e, de repente, passou a não ganhar nada.
Com a crise da covid, a Prefeitura anunciou em abril que 273 mil famílias de alta vulnerabilidade teriam direito a vale-alimentação para substituir a merenda escolar. Só quatro meses após o início da pandemia, em julho, a Prefeitura decidiu universalizar o benefício para as 960 mil crianças matriculadas na rede – um investimento de R$ 432 milhões.
“A maioria das nossas famílias não tinha cadastro em programas sociais, então muitas também acabavam nos procurando para buscar orientação”, diz o professor Tiago Fernandes Alves da Silva, de 35 anos, que atua na Armando de Arruda e participa da iniciativa solidária desde o começo. “Para elas, nós somos o agente mais próximo do Estado.”
Com a divisão de tarefas decidida pelo grupo, Silva ficou responsável por fazer compras e levantar o estoque de doações. Salas de aula passaram a servir de armazém para os alimentos e itens de higiene recebidos. Voluntários iam até a escola montar as cestas básicas e distribuí-las. “Não dependia de nenhuma esfera de governo, seja municipal, estadual ou federal.”
Alguns pais fizeram questão de participar da campanha. E houve quem abrisse mão da ajuda assim que voltou a ter renda. “Teve uma mãe que chegou com uma pasta de dente e um sabonete, e disse: ‘É o que eu tenho para dar’. “Outros falavam: ‘Este mês não preciso de óleo, pode colocar em outra cesta'”, relata. “Eles entenderam que era uma ação solidária. Foi muito bonito de ver.”
Iniciativas semelhantes aconteceram em escolas de outros bairros – Bom Retiro, Penha, Campo Limpo, Brasilândia. Para Silva, essas ações servem de aprendizado às crianças: “Isso também é educação integral”, diz. “Nessas horas, estou pouco me importando se ela sabe a diferença entre número e letra. Estamos ensinando a enxergar o ser humano em sua totalidade.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.