Depois de ter sido pressionado pelo Ministério de Minas e Energia e por toda a cúpula do setor elétrico, o Ibama cedeu às investidas do governo e do setor empresarial e vai permitir que a concessionária Norte Energia, dona de Belo Monte, volte a liberar o volume mínimo de água para o Rio Xingu, no Pará.

Durante todo o mês de janeiro e nos primeiros dez dias de fevereiro, 41 dias ao todo, o órgão ambiental impôs a determinação de sua área técnica e, a contragosto do próprio governo, exigiu que a empresa liberasse a quantidade que água que seus especialistas haviam apontado como necessária para manter a sobrevivência na região conhecida como Volta Grande do Xingu, uma extensão de 130 quilômetros do rio que vive o drama da falta de água, por causa da retenção pela barragem da usina.

Em janeiro, a Norte Energia previa, em seu “hidrograma B”, liberar 1.100 metros cúbicos por segundo (m³/s) de água, mas teve que acatar a decisão do Ibama e autorizar a passagem de 3.100 m³/s. Em fevereiro, a empresa previa 1.600 metros cúbicos de liberação, mas o órgão ambiental impôs 10.900 m³/s, até a próxima quarta-feira, 10.

Com o acordo firmado agora com a Norte Energia, porém, volta a valer toda a programação prevista no “hidrograma B” da empresa, ou seja, a vazão mínima de 1.600 metros cúbicos em uma área que, conforme mostra o histórico do Xingu, deveria receber mais de 14 mil m³/s neste mês. Essa vazão já deve ser aplicada a partir desta quinta-feira, 11.

O Ibama se comprometeu a manter o hidrograma B da Norte Energia até 31 de janeiro de 2022, data em que será feita a análise dos estudos complementares exigidos.

A reportagem teve acesso à íntegra do “termo de compromisso” que o Ibama assinou com a Norte Energia. O acordo prevê 15 novas medidas de compensação ambiental, fiscalização e apoio à população local. As medidas somam um investimento de R$ 157,5 milhões, que deverão ser executados nas ações, ao longo de três anos.

A lista de medidas inclui, por exemplo, alocação de R$ 18 milhões para contratação de dois helicópteros, com 1 mil horas de voo por ano, durante três anos. O programa mais caro, com orçamento de R$ 30,4 milhões, prevê um “projeto de incentivo à pesca sustentável”.

A maior parte das medidas, apesar de declaradas como novas, prevê ações que reforçam o monitoramento e fiscalização das condições de vida dentro e fora das águas do Xingu, algo que, a rigor, já era obrigação da Norte Energia entregar, independentemente dos novos acordos.

Pelo termo de compromisso, a Norte Energia terá de apresentar, até 31 de dezembro de 2021, estudos complementares sobre a vazão e a qualidade ambiental do rio. No acordo, Ibama e empresa afirmam que o objetivo é “garantir a produção energética e a preservação do meio ambiente e dos modos de vida das populações na região denominada como Volta Grande do Xingu”.

Como parte do compromisso, a Norte Energia já fez um depósito inicial de R$ 50 milhões para iniciar os programas. O restante será garantido por meio da contratação de um seguro-fiança.

Está prevista a de relatórios mensais ao Ibama com o detalhamento da evolução das medidas. “Além dos estudos requeridos pelo Ibama, deve a Norte Energia apresentar todos os estudos e dados aptos a demonstrar a segurança do hidrograma de consenso enquanto vazão adequada para manter a qualidade ambiental do trecho de vazão reduzida até a data limite de 31/12/2021”, informa o termo de compromisso.

Desde o ano passado, a área técnica do Ibama, especialistas independentes e o Ministério Público Federal em Altamira têm demonstrado, com dezenas de estudos já aprofundados, que não há condições de manter a vida no rio com a adoção do hidrograma B. Não por acaso, é grande a diferença entre a programação mensal prevista pela Norte Energia e aquela que o Ibama passou a impor neste ano.

Em março, por exemplo, a vazão que a Norte Energia fará será de 4 mil metros cúbicos por segundo, quando o hidrograma do Ibama, agora descartado, exigia 14.200 m³/s. Em abril e maio, quando a concessionária vai liberar 8 mil e 4 mil m³/s, respectivamente, o órgão ambiental tinha programado, da mesma forma, 13.400 e 5.200 m³s nos dois meses.

Histórico

A usina de Belo Monte, que custou R$ 44 bilhões, tem uma potência total de 11.233 megawatts (MW), mas sua geração média no ano chega a 4.571 MW, por causa da oscilação do nível de água da Rio Xingu. Não por acaso, a viabilidade da usina foi questionada por ambientalistas e engenheiros credenciados na construção de barragens. Durante quatro a cinco meses do ano, a hidrelétrica tem que ficar praticamente desligada, por causa da baixa vazão do rio na época de seca.

Em novembro de 2015, a Norte Energia fechou a barragem principal da usina, desviando uma média de até 80% da água para um canal artificial de mais de 20 quilômetros, onde foram instaladas as grandes turbinas da hidrelétrica. Com esse desvio, um trajeto de 130 km, que há milhares de anos convivia com um regime natural de seca e cheia, passou a ser submetido a um regime reduzido e constante de água, o que tem acabado com dezenas de espécies de peixes, tartarugas e frutos, além de comprometer a subsistência de milhares de famílias espalhadas em 25 vilas do trajeto do rio, entre indígenas e não indígenas.

O controle sobre a quantidade de água que passa ou não pela barragem é feito pela Norte Energia, por meio de “hidrograma de consenso” que prevê os volumes que devem ser liberados. Ocorre que esse documento técnico foi elaborado pela própria empresa, quando do seu licenciamento, em 2009, sem nenhum consenso com o Ibama.

No ano passado, após uma vistoria local realizada por diversos órgãos públicos e especialistas, foi novamente comprovado que “não está demonstrada a garantia da reprodução da vida, com riscos aos ecossistemas e à sobrevivência das populações residentes”, por causa da pouca água no trecho.

Há mais de dez anos, Ibama, Fundação Nacional do Índio (Funai), universidades públicas e o Ministério Público Federal alertam para a situação de tragédia ambiental que poderia ser imposta aos 130 quilômetros de corredeiras, cachoeiras, ilhas, canais, pedrais e florestas aluviais que formam a Volta Grande do Xingu. Hoje, o MPF chama a atenção para “evidências científicas de que um ‘ecocídio’ fulminará um dos ecossistemas da Amazônia de maior biodiversidade”.