01/08/2010 - 0:00
Uma paisagem bucólica toma conta dos campos do Sul. Os ventos gelados que sopram no inverno da Serra Gaúcha imprimem um ar histórico ao lugar, e faz desabrochar toda a riqueza acumulada nestas terras, que já foram cenário de grandes batalhas e do incansável trabalho dos imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no século XIX.
Olhar por entre os parreirais que circundam a região é um presente dos deuses, aguça os sentidos e enaltece a alma.
Hoje, toda a sua história se mescla à eficiência tecnológica sem perder o vínculo com os antepassados e chama a atenção do resto do mundo. O Vale dos Vinhedos, composto pelas cidades de Bento Gonçalves, Flores da Cunha, Nova Pádua, Far-roupilha, Faria Lemos e Garibaldi, tornou-se uma das principais rotas do agroturismo nacional, não somente pela veia histórica ou pelos belos cenários, mas por conquistar a excelência na produção de vinhos finos. No ano passado, 140 mil turistas foram ao vale conhecer o seu potencial agrovinícola.
Qualidade no campo: é no terroir que o vitivinicultor define as principais qualidades do vinho
Visitar uma vinícola é fazer uma incursão no passado e, ao mesmo tempo, no futuro. As tinas de madeira utilizadas para fabricar vinhos de mesa, com uvas americanas e híbridas, nos séculos passados, hoje são objeto de decoração nos galpões que abrigam pipas de aço inoxidável resfriadas por controles digitais. Estes equipamentos de última geração guardam raridades tiradas de vinhedos cultivados com uvas europeias vitiviníferas, próprias para a produção de vinhos finos, e que começaram a ser cultivadas no Brasil nos anos 90, período da “crise da garrafa azul”, a invasão dos vinhos alemães. Foi quando os viticultores trocaram o sistema de cultivo latado para as espaldeiras. “A reconversão dos vinhedos foi a grande virada do setor, pois percebemos que poderíamos cultivar aqui as uvas vitiviníferas, próprias para a fabricação de vinhos de alto nível”, explica Ademir Brandelli, vitivinicultor e enólogo da Don Laurindo, casa fundada em 1887. “A qualidade do terroir é fundamental para a fabricação de um bom vinho.” Por terroir, entende-se o conjunto agricultável solo-planta-clima. Na Don Laurindo são produzidas anualmente 120 mil garrafas.
“Não estou interessado em quantidade, mas, sim, em qualidade”, diz Brandelli. “Tudo começa aqui, na terra. É no vinhedo que podemos definir a qualidade do vinho”, resume João Valduga, diretor da Casa Valduga, empresa que seu avô fundou em 1875, e que jura ter nascido embaixo de uma parreira. “Depois de constatada esta qualidade no terroir é que iniciamos todo o processo de elaboração e amadurecimento do vinho.
Todos aqui têm esta história de amor com o cultivo da uva. É isso que explica nosso apreço tão grande por estes produtos.” Por tamanha importância agrícola, os roteiros turísticos começam no campo.
Na Casa Valduga, a primeira vinícola a incentivar o agroturismo na região, são os próprios irmãos Valduga que recepcionam os visitantes. “Isso aqui não é trabalho, é a nossa vida”, resume Juarez Valduga. Em dez anos, a empresa investiu US$ 25 milhões, dos quais US$ 8 milhões foram aplicados nas parreiras, e US$ 1,2 milhão na aquisição de um moderníssimo filtro tangencial, equipamento que deixa o vinho “mais puro”. O complexo conta com pousadas, restaurantes, 156 hectares de vinhedos e a unidade fabril, que tem a maior cave do País, com capacidade para seis milhões de garrafas. Hoje, guarda 1,8 milhão delas. O empreendimento desperta a atenção de investidores, mas os Valduga não querem nem ouvir falar na entrada de capital externo. “Recebemos propostas de investidores todos os dias, é cansativo. Não vamos injetar capital de fora, esta é uma empresa familiar.” Os vinhos finos produzidos sob as marcas do grupo são exportados para 11 países, inclusive França e Itália, os maiores produtores mundiais. “A nossa meta é produzir um vinho de nível elevado, cada vez melhor, e fazer com que os turistas se sintam em casa.”
No ano passado, segundo o Instituto Brasileiro do Vinho, Ibravin, foram produzidos 75,9 milhões de litros de vinhos, sendo 5,75 milhões de vinhos finos. “Os brasileiros estão abrindo a cabeça para os vinhos finos nacionais”, acredita Diego Bertolini, gerente de marketing do Ibravin. A tese explica o crescente interesse turístico na Serra Gaúcha. A vinícola Miolo recebeu, em 2009, 129 mil turistas interessados em conhecer o processo de fabricação de vinhos finos. A empresa é uma das maiores do Brasil, e vem incorporando outras marcas, como a Almadén e a Lovara, ao grupo.
Vinho artesanal: nos séculos passados, a bebida era armazenada em grandes pipas de madeira grappia
Vinho tecnológico: equipamentos de última geração conferem pureza e qualidade aos vinhos finos brasileiros
Produz 14 milhões de litros e almeja chegar a 17 milhões de litros até 2012. William Triches, enólogo da casa, explica que tamanha produção só foi possível com a expansão dos vinhedos para outras regiões do Rio Grande do Sul e para o Vale do São Francisco.
“A indústria agrícola do vinho se expandiu grandiosamente na região da serra; por isso, fomos buscar alternativas viáveis para continuarmos produzindo vinhos de qualidade.”
Na região, segundo Triches, esta expansão foi tão intensa que um hectare de terra, dependendo da localização, chega a valer R$ 300 mil.
A segunda parte das visitas é uma espécie de mergulho na história da fabricação dos vinhos brasileiros. O cheiro forte das barricas de carvalho, que podem ser de origem francesa, americana, húngara ou russa, invade a linha de produção.
Toques de madeira: as boas safras adormecem em barricas de carvalho nas caves e adegas do Rio Grande do Sul
Os métodos antigos de fabricação da bebida são sempre mencionados e alguns “segredos” são mantidos a sete chaves. “Há coisas que somente meu pai sabe”, explica Roberta Boscato, da Boscato Vinhos Finhos. Apesar de conservar esses mistérios, a Boscato é altamente automatizada. “Todo o processo de fabricação passa por um rigoroso acompanhamento tecnológico para chegarmos a um vinho de alto nível”, diz. A tecnologia é empregada em todos os processos da vinícola, desde o campo, com a viticultura de precisão, até o engarrafamento, que é de 400 mil litros. “Isso não quer dizer que deixamos de lado a história dos nossos antepassados.” As vinícolas da Serra Gaúcha guardam este charme, que mistura o passado e o futuro, mas sobretudo mostram como foi possível transformar uma pequena atividade agrícola comunitária em uma indústria gigante, agora, admirada pelos maiores especialistas do mundo.