23/03/2021 - 19:16
Especialistas consultados pelo Estadão endossaram os fundamentos usados pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), para rejeitar a ação proposta pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra decretos dos governos do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul que impuseram ‘toque de recolher’ à população, endurecendo as restrições à circulação de pessoas diante do agravamento da pandemia.
Na avaliação de Bolsonaro, os decretos afrontam as garantias estabelecidas na Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica e ‘subtraíram parcela importante do direito fundamental das pessoas à locomoção, mesmo sem que houvessem sido exauridas outras alternativas menos gravosas de controle sanitário’. O presidente também queria que o STF estabelecesse que medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem a aprovação de leis locais, por parte do Poder Legislativo, não podendo ser determinadas unilateralmente por decretos de governadores.
Em sua decisão, o decano do tribunal observou que a Constituição prevê a legitimidade do Presidente da República para a propositura da ação de inconstitucionalidade, o que não pode ser confundido com a ‘capacidade postulatória’. O ministro considerou um ‘erro grosseiro’ a formalização do pedido pelo próprio chefe do Executivo e não pela Advocacia Geral da União (AGU), a quem cabe representar judicialmente os interesses do Planalto perante o STF.
Advogados ouvidos pelo blog foram unânimes em elogiar o entendimento do decano e viram na ação uma empreitada política do presidente. Para Rafael Valim, especialista em Direito Administrativo, sócio do Warde Advogados, a decisão foi ‘corretíssima’. “Trata-se de uma lição elementar de Direito”, disse.
Na mesma linha, Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista, classificou como ‘inconcebível’ a ação proposta em nome do próprio Bolsonaro. “O pedido formulado, sabidamente natimorto, ostenta meros e apequenados contornos de interesse estritamente político, a fim de justificar o imponderável e recrudescente posicionamento negacionista do presidente da República acerca das medidas adotadas pelos demais entes da federação no combate e enfrentamento à crise sanitária decorrente do novo coronavírus”, avalia.
Para o advogado, a decisão de Marco Aurélio foi ‘polida’. “O ministro foi capaz de eleger fundamentos menos contundentes com o fito de indeferir de plano o pleito deduzido, notabilizado pela natureza autoritária que dele emerge, posto que manifestamente incompatível com o Estado Democrático de Direito assegurado pela Constituição Federal”, acrescentou.
O criminalista Diego Henrique, sócio do Damiani Sociedade de Advogados, considerou que, além de um erro técnico, a empreitada do governo revela ‘o flerte com o autoritarismo’.
“Passando ao largo do mérito da ação e, mais ainda, de qualquer discussão político-ideológica, é vexatório o nível de despreparo técnico do Gabinete da Presidência, não só do homem em si, mas de toda a equipe que o assessora. Este último vexame demonstra, novamente, o flerte com o autoritarismo e o absoluto desconhecimento do funcionamento do Estado Democrático de Direito (e de suas instituições) instituído pela ordem constitucional vigente”, opinou.
Na avaliação do advogado Marcus Vinicius Macedo Pessanha, especialista em Direito Público Administrativo e Regulatório, a decisão já era esperada. Desde o início da pandemia, o Supremo tem sido acionado para arbitrar a briga travada pelos entes federativos em torno das estratégias para conter o surto do novo coronavírus. Em abril do ano passado, os ministros decidiram que governantes locais têm autonomia para adotar medidas de quarentena e isolamento social. Antes disso, em março, o próprio Marco Aurélio concluiu, em um processo movido pelo PDT, que Estados e municípios poderiam decidir sobre restrições de locomoção – caso que atraiu a ação de Bolsonaro para sua relatoria.
“Considerando os posicionamentos mais recentes do STF, bem como a expansão descontrolada da pandemia com recordes de infectados e mortos sendo superados todos os dias, não é inesperado o insucesso da ação proposta pela Presidência da República contra as medidas de restrição adotadas por governadores e prefeitos. Já a extinção em decorrência de vício de capacidade postulatória, indicado como insanável pelo ministro relator, não surpreende pela previsibilidade da questão, facilmente perceptível”, disse.
O advogado criminalista e professor de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva lembrou que as decisões recentes tomadas pelo Supremo na esteira da pandemia não isentam o governo federal de agir para minimizar a crise sanitária. Para o especialista, o presidente usou a ação como plataforma para acenar ao núcleo duro do bolsonarismo.
“Ao atacar apenas a decisão de Estados governados por opositores, mesmo tendo outros Estados que tomaram as mesmas precauções sanitárias, essa ação teve como objetivo apenas dar uma resposta aos seus próprios apoiadores. Falando de outro modo, propondo uma ação manifestamente injustificada, dá a impressão que o objetivo é o uso como plataforma de discurso populista, não visando, na verdade, uma resposta efetiva do STF. As decisões do STF buscam reconhecer que o Executivo precisa se unir aos Estados e municípios, com base no conhecimento científico e normativas da OMS, para ajudar o país a sair deste desastre humanitário que estamos vivendo”, afirma.
Sobre a decisão de Marco Aurélio, Faucz avalia que o decano ‘reconheceu aquilo que qualquer estudante do Direito sabe, que a capacidade postulatória cabe ao advogado-geral da União e não ao presidente diretamente’.