22/02/2017 - 13:30
Depois de conferir com o fotógrafo a imagem que abre esta reportagem, realizada na unidade de pesquisa da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia em Brasília, a bióloga e pesquisadora chinesa Caixia Gao, 48 anos, disparou em um inglês carregado de sotaque: “vocês vão me tornar famosa com essa foto.” Simpática e muito concentrada durante toda a entrevista, Gao é uma personalidade que já entrou para a história mundial das ciências agrárias. Em 2014, ela foi a primeira cientista a publicar um artigo na prestigiada revista científica britânica Nature, mostrando resultados bem sucedidos sobre o uso da mais recente técnica de edição de genomas em plantas. Chamada de Crispr-Cas9, ela permite alterar o DNA com extrema precisão e modificar apenas a parte desejada de seu funcionamento. No DNA estão todas as informações genéticas de um organismo.
No caso de Gao, ela conseguiu retirar partes do código genético de uma planta de trigo para gerar uma planta resistente ao oídio, nome dado a famílias de fungos que atacam dezenas de culturas, entre elas, grãos, frutas e verduras. As perdas em uma lavoura sob ataque dessa praga podem chegar a 50% da produção.
A técnica da edição de genomas utilizada por Gao também vem sendo estudada para doenças em humanos e animais, e vai revolucionar a agricultura nas próximas décadas. Isso porque ela também permite a alteração do DNA sem a inclusão de um componente de outra espécie, como ocorre na transgenia. “Até agora, para solucionar algumas questões era preciso recorrer obrigatoriamente aos transgênicos”, afirma Gao. “Provavelmente, sem a inclusão de genes de outras plantas, os produtos serão mais bem aceitos no mercado consumidor”, diz. No final do ano passado, Gao esteve no Brasil justamente para compartilhar as suas experiências com pesquisadores da Embrapa e para conhecer os estudos de ponta que também vêm sendo desenvolvidos no País. Outras quatro unidades possuem núcleos de pesquisa sobre o tema, além da Recursos Genéticos e Biotecnologia: a unidade Soja, em Londrina (PR); a Gado de Leite, em Juiz de Fora (MG); a Milho e Sorgo, em Sete Lagoas (MG); e a Agroenergia, também em Brasília.
Os resultados da pesquisa chinesa foram obtidos ao longo de quase sete anos de trabalho no laboratório da Academia de Ciências Agrícolas da China, em Pequim, coordenado por Gao. Nesse país, o oídio é a terceira pior praga das lavouras. “Não temos alternativas para combater a doença que afeta o trigo, a segunda maior cultura do país”, diz Gao, que trabalhava na Dinamarca, quando foi convidada pelo governo para retornar ao seu país, em 2009. A segurança alimentar é uma prioridade na China, que possui 1,3 bilhão de habitantes para alimentar e produz apenas 450 milhões de toneladas de grãos, das quais 126 milhões de toneladas são de trigo. Não por acaso, a China é a maior importadora global de alimentos. Só para comparação, o Brasil tem uma população de 200 milhões de habitantes e nesta safra deve produzir acima de 215 milhões de toneladas de grãos.
O que fez com que Gao ganhasse fama foi a forma como solucionou o problema.
A equipe liderada por ela chegou a uma variedade de trigo resistente ao fungo ao “deletar” genes que paralisam as defesas da planta, fazendo com que seja capaz de combater a doença. A ferramenta que permitiu o resultado dessa pesquisa chama-se Crispr, estudada e aprimorada pela engenharia genética mundial desde 2012.
O nome é complicado, mas sua aplicação é bastante simples. No caso, a ferramenta que permite a retirada de uma característica indesejada se chama Crispr-Cas9 (confira quadro na pág. 33). “É uma revolução porque é fácil, rápido e barato, além de ter um elevadíssimo grau de precisão”, diz Gao. Os testes de campo devem ocorrer ainda neste ano na China. “Acredito que em cinco anos o Crispr possa gerar produtos em diferentes países e culturas.”
Nos Estados Unidos, por exemplo, uma pesquisa já realizada na Universidade Penn State, na Pensilvânia, mostra esse caminho. Cogumelos que tiveram genes editados por meio do Crispr-Cas9, visando retardar a sua oxidação, foram regulamentados pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) como não transgênicos.
A postura do Usda abre precedente para que outros produtos dessa tecnologia sejam vistos por órgãos reguladores da mesma forma. De acordo com Adriana Brondani, presidente do Conselho de Informações em Biotecnologia (CIB), embora esse tipo de produto não esteja previsto na legislação brasileira, futuros produtos podem vir a ser contemplados por meio de uma normativa. “A regulamentação desse tipo de produto está sendo discutida em vários países, inclusive no Brasil”, afirma. “Mas a tendência aqui é que eles se enquadrem na legislação vigente e também sejam considerados não-transgênicos”, diz.
O pesquisador Elibio Rech, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia foi pioneiro no País em estudar a técnica. “Com ela atingimos a maturidade do DNA recombinante”, diz Rech. “O que faltava era a precisão que ela nos proporciona.” Desde 2012, Rech trabalha com a edição de genoma de soja por meio da ferramenta Crispr-Cas9 em três projetos. Um deles é para gerar uma soja resistente à ferrugem asiática, causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizie. Os outros dois projetos buscam aumentar o valor nutricional da oleaginosa: um eleva a quantidade de um ácido e o outro de proteína no grão. Os projetos de Rech visam agregar valor à soja, principal grão produzido pelo Brasil. São cerca de 103,8 milhões de toneladas esperados na safra 2016/2017, atrás dos Estados Unidos, com 117,2 milhões de toneladas. No caso da ferrugem asiática, a praga é capaz de levar a perdas superiores a 80% da lavoura. O Brasil, que conta com apenas um tipo de fungicida para combater a praga, gasta cerca US$ 2 bilhões por ano para controlar as infestações. “O uso constante de um mesmo produto aumenta os riscos de resistência ao fungicida”, afirma Rech. “Portanto, é estratégico desenvolver uma planta resistente a doença.” O pesquisador conseguiu isolar um gene com potencial para controlar a doença.
Para a melhoria nutricional do grão da soja, Rech quer aumentar a quantidade de ácido oleico, acima dos atuais de 24%. A canola, por exemplo, possui 45% desse ácido graxo, que é importante na síntese dos hormônios em humanos e em animais. “Já conseguimos uma soja com mais de 90% de óleo”, afirma o pesquisador. “Isso nos permite agregar valor a um produto que já tem muita tecnologia.” Nos Estados Unidos, por exemplo, os pesquisadores do país já trabalham com a possibilidade de que parte da soja produzida lá conte com mais ácido oleico até 2025. “Espero que no Brasil não demore muito mais que isso”, diz Rech. No caso do aumento da proteína no grão, que já possui em torno de 40% desse nutriente, a quantidade pode ser elevada em mais 15%. “Nos próximos dez anos ganhará força uma demanda que já começamos a perceber, por uma soja com maior quantidade e qualidade de proteína”, afirma o pesquisador.
Não por acaso, ele reconhece o grande papel da colega chinesa no uso da tecnologia que veio para ficar. “Gao é mesmo pioneira”, diz Rech. “Ela aplicou o conceito de edição de genomas com Crispr-Cas9 com uma velocidade muito acelerada.” Rapidez, aliás, é uma das virtudes da pesquisadora chinesa Ela e sua equipe de dez estudantes já estão de olho na segunda pior praga do trigo em seu país: a sarna. “Esperamos em breve ter bons resultados para mostrar”, disse Gao ao deixar o Brasil.