01/03/2012 - 0:00
A interrupção das exportações de carne à União Europeia, em 2008, significou a perda de US$ 1,2 bilhão por ano ao Brasil. O professor , da Unicamp, defende uma nova estratégia para o País
Em maio, o veterinário paulista Pedro de Felício estará em Genebra, na Suíça, discutindo a qualidade da carne bovina com especialistas da Organização das Nações Unidas, como tem feito desde 1999. Professor há 40 anos na Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo, De Felício também comumente é requisitado pelos americanos. Em novembro, estava na Texas A&M University explicando a japoneses e coreanos o que o País entende por “high quality beef”. Em entrevista à DINHEIRO RURAL , ele fala sobre a indústria da carne bovina, o papel do governo e os mercados que o Brasil perdeu e não consegue recuperar, como o europeu.
“O Brasil precisa entrar nos mercados de carne premium”
DINHEIRO RURAL – Que análise o sr. faz do mercado internacional que o Brasil detém atualmente?
PEDRO DE FELÍCIO – Nos preços, houve uma valorização da carne brasileira no mercado internacional, mas, em volume, as exportações só têm recuado, de 2008 para cá. Hoje, estamos restritos a vender para a Rússia, Oriente Médio e Venezuela. Nós não vendemos para a União Europeia, por exemplo, um mercado que tínhamos na mão até 2007 e que pagava muito bem. Perder o mercado europeu de carne foi uma grande bobeada da diplomacia brasileira.
RURAL – O que significa não ter a Europa como cliente?
DE FELÍCIO – Em 2007, o Brasil havia vendido à União Europeia 194 mil toneladas de carne bovina. Em 31 de janeiro de 2008, definitivamente a Europa disse não à carne “in natura” do Brasil. Essa perda de mercado significou US$ 1,2 bilhão a menos de receita vinda desses países. O Brasil vendia a tonelada de nossa carne de primeira qualidade por até US$ 8 mil. Hoje, não temos um cliente que nos pague esse valor, como era o caso de Alemanha e Itália.
PICANHA NA BRASA: cliente é servido na churrascaria Latin Grillhouse, em Pequim
RURAL – Eram justos os argumentos dos europeus, à época, para proibir a entrada de carne brasileira em seus países?
DE FELÍCIO – Não havia argumento justo. Foi tudo fabricado politicamente, e o Brasil não teve competência para reverter a situação quando os europeus começaram a exigir a rastreabilidade do rebanho. Na época, havia uma ativista da Dinamarca, Marian Fischer Böll, que gostava de ser fotografada com um leitãozinho no colo, um cesto de frutos, era tudo muito colorido. Quando Marian se tornou secretária de Agricultura da União Europeia, ela se associou a Padraig Walshe, presidente do sindicato dos pecuaristas da Irlanda. Há um vídeo de 2008, gravado na sede do sindicato irlandês, em que Walshe promete aos fazendeiros locais que o Brasil vai continuar fora da Europa porque o País não atendia aos mínimos requisitos de qualidade. No entanto, a Irlanda teve quase 1,6 mil casos de vaca louca entre 1988 e 2008. Lá se abafou o quanto pôde a discussão da qualidade da ração dada aos animais e que provocou a doença.
RURAL – O Brasil pode voltar a exportar para a Europa?
DE FELÍCIO – Não acredito que se retorne aos níveis históricos de venda de carne para a Europa. Mas, por causa da necessidade deles, mesmo com a crise na zona do euro, aparentemente há países dispostos a negociar alguma coisa porque o preço da carne naquele continente está em disparada. Na Europa ainda há uma população muito grande de famílias que migraram para lá e desejam comer carne bovina. Essa população que hoje está comendo porco e frango sempre gostou da carne brasileira porque, por ter fama de ser mais dura, era mais barata que a carne de gado europeu.
A interrupção das exportações de carne à União Europeia, em 2008, significou a perda de US$ 1,2 bilhão por ano ao Brasil. O professor , da Unicamp, defende uma nova estratégia para o País
RURAL – O que é high quality beef no mercado internacional de carne bovina?
DE FELÍCIO – O que o mercado chama de high quality beef é a carne proveniente de raças de origem europeia e com alto grau de marmorização, que é a gordura entremeada no músculo da carne. É o tipo de carne que o Japão tem e por não ser autossuficiente na criação de gado compra de países como Austrália e Estados Unidos. A Coreia do Sul, por sua vez, adquire essa carne dos Estados Unidos a preços que podem passar facilmente de US$ 10 mil a tonelada, duas vezes e meia a média de preço da carne brasileira.
RURAL – Por que o sr. foi aos Estados Unidos falar sobre high quality beef se não temos essa carne e, além disso, esses mercados estão fechados para o Brasil?
DE FELÍCIO – Eles querem envolver o Brasil nessa discussão, porque ninguém mais pode ignorar a importância do País no cenário mundial. Falei do potencial do Brasil para produzir essa carne por encomenda. Mostrei o crescimento do uso de sêmen de angus no Brasil Central e o crescimento dos confinamentos. O País precisa entrar nesses mercados que exigem qualidade.
RURAL – Mas como vamos entrar nesses mercados?
DE FELÍCIO – Talvez, fornecendo carne para a China. As evidências são de que a China está desenvolvendo um mercado de high quality beef para a elite porque o chinês rico quer comer tão bem quanto o japonês rico.
RURAL – No mercado interno, o brasileiro não está exigindo mais qualidade, como ocorre em outros segmentos da economia?
DE FELÍCIO – Existe uma classe social emergente no Brasil que está tentando aprender alguma coisa sobre comer melhor, tentando encontrar produtos de melhor qualidade. Há um público experimentando e até pagando R$ 40 pelo quilo da carne. Depois, ele vai pagar R$ 60 pelo quilo da carne, da mesma forma que está pagando R$ 80 por uma garrafa de vinho. Há dinheiro no bolso do consumidor para que ele faça essas escolhas.
“No Brasil, existe uma classe emergente aprendendo a comer melhor”
PONTO DE VENDA: gôndola do supermercado Walmart, de São Paulo
RURAL – O consumidor mais exigente não cria a possibilidade de se classificar a carne por qualidade, como ocorre nos EUA e na Austrália?
DE FELÍCIO – No frigorífico, há décadas se faz classificação da carne entre quatro paredes. O frigorífico continua escolhendo, dentro daquilo que ele compra, o que consegue vender mais caro ao consumidor sem ter de pagar mais para o pecuarista. De modo geral, os pecuaristas têm culpa nesse cartório porque é possível dividi-los em dois grupos. Um grupo sabe que produz bem, poderia ser remunerado por isso e fica indignado de entregar um boi de qualidade e receber pelo preço da chamada bica corrida, onde tudo tem o mesmo valor. E há o outro grupo com medo de que, se vier uma remuneração por qualidade da matéria-prima, ele vá ser prejudicado. Esse pecuarista quer ágio no que tem de melhor no pasto, mas não quer deságio no que tem de pior.
RURAL – Como resolver esse impasse?
DE FELÍCIO – Ainda não há pressão por classificar a carne dos bovinos abatidos para mostrar a todos os consumidores o que estão comprando. Mas o País já esteve bem próximo disso. Em 2004, quando o Roberto Rodrigues era ministro da Agricultura, se chegou a criar uma classificação bem simples, mas que resolvia a questão. As discussões à época, porém, esfriaram. Para mim, bastava chamar alguns grandes frigoríficos e propor a eles um modelo de classificação que todo mundo ia atrás. Foi assim nos Estados Unidos, em 1927, quando o Departamento de Agricultura (Usda) implantou no país a classificação da carne. Na época, a Swift americana também não queria, mas acabou cedendo porque chegou à conclusão de que seria muito interessante colocar na carne uma marca do governo, tipo Usda Prime, Usda Choice, e assim por diante. Quando a Swift, que era a líder de mercado, aderiu à classificação, todo mundo foi atrás.
RURAL – O governo brasileiro não deveria fazer o mesmo?
DE FELÍCIO – Hoje, eu tenho dúvida se o governo federal deveria se impor. Os governos das últimas décadas deixaram que se perdesse muito da imagem positiva de seus inspetores porque, por lei, eles não podem inspecionar o que é da alçada estadual e municipal. O Ministério da Agricultura perdeu espaço, nesse sentido.
RURAL – Mas hoje o governo está empenhado em reformar o Mapa.
DE FELÍCIO – Pode até ser que consigam realizar alguma reforma. Mas, em relação à classificação da carne, acredito que o País necessita de uma agência que não seja vulnerável às ingerências políticas. Teria de ser uma agência que estivesse nas mãos de cientistas, de especialistas com formação acima do nível de mestre para regulamentar esse setor. Aí o consumidor poderia ter segurança, e o País poderia vender mais carne com valor agregado. É uma escolha política, uma decisão que deve vir de cima, da presidenta Dilma.