27/06/2021 - 16:00
À medida que vê sua base de apoio se estreitar, o presidente Jair Bolsonaro se volta a um segmento em que exerce forte influência para alavancar sua campanha à reeleição em 2022. Nos últimos dias, ele intensificou a troca de afagos com as polícias militares, em um movimento político que corrói a ascendência de governadores sobre as tropas e nutre planos de politizar as forças estaduais e de aumentar a presença delas no Congresso.
Isenção de IPI de automóveis, créditos imobiliários e promessa de uma nova lei orgânica da PM e da Polícia Civil para esvaziar o poder dos governadores sobre os contingentes estaduais. Bolsonaro busca garantir por todas as frentes o apoio dos policiais militares. No último dia 9, fora da agenda, Bolsonaro foi a um fórum com 44 entidades do setor que, entre outras atividades, buscou treinar agentes para a missão eleitoral. Além de mais um mandato para o presidente, o grupo pretende ao menos dobrar os 34 policiais e bombeiros militares eleitos em 2018 para cargos na Câmara, Senado, assembleias e governos estaduais.
O sargento Leonel Lucas de Lima está à frente da entidade que promoveu o encontro. A Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares do Brasil (ANERMB) é o principal núcleo da rede de policiais em volta de Bolsonaro identificada pela reportagem. “Para nós é uma honra estarmos aqui com o senhor dizendo que os policiais militares e os bombeiros militares, que fizeram a campanha do senhor, continuamos acreditando no seu trabalho”, disse Lucas no evento.
A ANERMB se consolidou como a maior entidade de militares estaduais. Em três anos, ganhou cerca de 50 mil filiados e alcançou 200 mil policiais e bombeiros inscritos. Só agora, no terceiro ano de mandato de Bolsonaro, o presidente a prestigiou pela primeira vez. “Nós militares, com nossas famílias, demos 18 milhões de votos ao presidente. Deixamos claro a ele que em cidades que ele nem sabe que existe teve votos por causa dos PMs”, frisou Lucas ao Estadão. “Está na hora de a gente ser reconhecido pelo que fez”.
A relação de interlocutores com o setor inclui o deputado Victor Hugo (PSL-GO), ex-líder do governo na Câmara. Na mira de Bolsonaro por apoio estão nomes influentes da área que já deram demonstrações públicas de apreço, como o comandante-geral da PM do Distrito Federal, coronel Márcio Vasconcelos, e o comandante da Academia da PMDF, coronel William de Araújo. Na solenidade de formatura do curso de aperfeiçoamento de oficiais do Distrito Federal, no dia 2, Vasconcelos e Araújo encerraram seus discursos com o slogan eleitoral: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
O Estadão também mapeou cargos no Planalto e no governo ocupados por militares estaduais. Sargento egresso do Bope do Rio, Max Guilherme é um assessor especial que goza da confiança do presidente e prepara candidatura à Câmara. Alvo da investigação sobre atos antidemocráticos, já usou as redes sociais para atacar o Supremo Tribunal Federal e parabenizar a PM do Rio pelo massacre no Jacarezinho.
Entidades à parte, Bolsonaro espalhou policiais em áreas técnicas, em núcleos que fomentam a narrativa política e ideológica nas redes e até em postos que exigem interação com a CPI da Covid. A Fundação Nacional de Saúde foi entregue ao ex-comandante da PM de Minas Gerais Giovanne Gomes da Silva. À frente da Secretaria Nacional de Segurança Pública está o coronel da PM do DF Carlos Paim.
O Distrito Federal, governado pelo aliado Ibaneis Rocha (MDB), é um importante fornecedor de policiais à gestão Bolsonaro. A reportagem identificou ao menos 76 militares do DF cedidos a ministérios, ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em 2020. Entre eles, o atual comandante da PMDF, coronel Vasconcelos. Também cedido por Ibaneis, o chefe do Gabinete Adjunto de Informações do Gabinete Pessoal da Presidência é o major Carlos Henrique Costa Oliveira. Coube a ele assinar e enviar à CPI o ofício em que o Planalto alegou não ter atas de reuniões das quais participou o deputado Osmar Terra (MDB-RS).
Benesses
As demonstrações de sintonia foram retribuídas por Bolsonaro com projetos de cunho populista que impactam o bolso dos PMs. Dois dias depois do evento veio à tona o programa do governo para crédito imobiliário a policiais e bombeiros, pleito que Bolsonaro carregava no colo desde 2018. Ele não será o primeiro a financiar casas para militares estaduais em ano pré-eleitoral. Em 1997, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso usou de expediente semelhante, com um convênio da Caixa que se limitou à construção de cerca de 10 mil moradias a policiais em São Paulo.
No começo deste mês, deputados bolsonaristas aprovaram em comissão da Câmara projeto que zera IPI de automóveis adquiridos por profissionais da segurança pública. Proposta em julho de 2020, durante a pandemia e sem estimativas de impacto fiscal, a benesse está sendo justificada pela base governista com valorização dos policiais. Segundo o autor, deputado Fabio Reis (MDB-SE), seria um modo de expressar a “gratidão que o País sente pelo policial”. O relator, Carlos Jordy (PSL-RJ), disse que é um “o mínimo de reconhecimento” aos policiais, que vivem “uma espécie de sacerdócio” e foram “tratados como inimigos da sociedade nos governos do PT”.
Não é só. A base bolsonarista se prepara para votar até o fim do ano os projetos de lei orgânica da PM e da Polícia Civil. No caso dos militares, em especial, a articulação ameaça esvaziar o poder de governadores sobre eles. A primeira versão da proposta cria eleição interna, escolha por lista tríplice e mandato para o cargo de comandante-geral.
Para as associações, é pouco. Elas se manifestam ainda contra a reforma administrativa – agentes econômicos e políticos alertam para a falta de compromisso e a possibilidade de o presidente desidratar a proposta, para não desagradar a categoria. “O que Bolsonaro fez de bom até agora? Até agora, nada. A gente admira como ele está conduzindo o Brasil, mas para a categoria em específico não fez nada”, afirmou o sargento Lucas, ao Estadão.
Líder da bancada da bala, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) afirma que o governo ainda não sinalizou apoio aos projetos. Ele reclama que, embora tenha acesso ao presidente, a bancada jamais foi convidada para um café no Alvorada. Além disso, revela ter recebido o recado de que o tão demandado Ministério da Segurança Pública, que empoderaria as polícias, não sairá do papel. “Neste mandato, me dou por vencido. Perdi essa”, comentou.
O elo do presidente com a bancada e com as entidades de classe é menos sólido do que parece. As associações de praças e de oficiais não têm indicados no Planalto e a bancada divergiu do governo em temas importantes, como ao ser contra a figura do juiz de garantias e a retirada do Coaf do Ministério da Justiça. Além disso, a criação da pasta da Segurança era um pleito das associações.
A aparente contradição do não alinhamento institucional de Bolsonaro com esses grupos explica-se em parte pelo pragmatismo. Estima-se que apenas um terço dos policiais sejam realmente ligados a organizações. Em paralelo, o presidente cacifa lideranças ligadas a ele mesmo, originário do meio militar, porque conta com a adesão natural da categoria conservadora.
Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima é um dos principais pesquisadores da influência do bolsonarismo sobre as polícias. “A capacidade das associações de policiais de liderar a agenda de reformas nas condições de trabalho dos profissionais da segurança pública foi substituída pela assunção quase que inconteste de Jair Bolsonaro como porta-voz hegemônico do sentimento médio e das expectativas desses profissionais”, afirma.
Governadores
Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) sobre publicações que policiais fazem na internet projetou que o alinhamento a discursos antidemocráticos, golpistas e radicais é demarcado em um batalhão de aproximadamente 120 mil homens. Entre PMs de baixa patente, 41% interagem com grupos bolsonaristas nas redes sociais. Outro levantamento, do instituto de pesquisa Atlas, mostra que 21% dos policiais brasileiros são favoráveis a uma ditadura militar, em consonância com bolsonaristas radicais.
A influência do bolsonarismo nos quartéis alimentou a tensão já permanente de governadores com suas tropas. Para Renato Sérgio, o risco de ruptura democrática via PMs é real e as demais instituições não agem para contê-lo. “Há um risco que não é pequeno, não é imaginário. Está posto, mas também não é iminente. Há espaço para evitar. Bolsonaro faz o jogo dele, de uso político, e o que as instituições estão fazendo para evitar? Bolsonaro explora a omissão das instituições”, diz.
A exploração política das polícias por bolsonaristas ficou evidente em março, quando um PM da Bahia em surto psicótico atirou contra seus pares no Farol da Barra, em Salvador, e acabou morto por eles. A deputada Bia Kicis (PSL-DF) defendeu a ação do policial em surto ao dizer que ele foi um “herói” ao contrariar “ordens ilegais” do governador Rui Costa (PT), em referência a medidas sanitárias contra a covid.
O episódio levou 16 governadores a escreverem uma carta denunciando o incentivo a motins e cobrando providências. Todos os signatários, em maior ou menor escala, enfrentam desgastes com os militares em razão de demandas reprimidas e do bolsonarismo nas tropas. A reportagem pediu entrevistas a cinco deles (ES, PI, RS, CE e BA), para que descrevessem a relação com os policiais e narrassem as consequências da carta. Nenhum se manifestou.
As entidades representativas defendem a politização dos militares e o lançamento de candidaturas para defender bandeiras da categoria. Afirmam, porém, reprovar motins e greves. “A representatividade e a atuação do militar têm limites. Os que querem partir para esse lado sabem das consequências. Evidentemente, temos parcela que faz, mas jamais está representando uma classe. A tendência não é aumentar, e os atos precisam ser apurados e punidos”, frisou o presidente da Federação Nacional das Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), coronel Marlon Teza, de Santa Catarina.
O fato é que algumas associações dividem com os governadores, comandantes-em-chefe das polícias, a influência sobre as tropas. “Temos sinais pretéritos que recomendam olhar diferenciado para algumas das associações. Não quero generalizar. Por isso, dizemos aos comandantes: cuidem dos seus comandados como filhos, porque, se não cuidarmos, alguém vai tentar cuidar. E cuidar às vezes não é para o lado bom”, ressaltou o presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais, coronel Euller Chaves, chefe da PM da Paraíba.
Nos últimos motins, chefes de entidades menores acabaram processados por liderar manifestações. No Ceará, militares se amotinaram por melhores salários no início de 2020. Bolsonaro não interveio, mas criticou a classificação dos atos como motim e não como greve. O movimento instalou um caos na segurança pública cearense por 13 dias. “Se no movimento de 2011 tivesse acontecido o que tentamos fazer hoje (punição), isso hoje não aconteceria”, disse o promotor Sebastião Brasiliano, responsável pela investigação dos atos. Cerca de 300 policiais foram denunciados à Justiça. “Já falei com o procurador-geral que vamos precisar de presídio militar. Meu pensar é que vão se hospedar lá no mínimo 200, com 8 a 20 anos, em regime fechado”, completou.
Em nota, a PM do DF afirmou lamentar “ilações” sobre a politização da tropa. De acordo com a instituição, a repetição do slogan de Bolsonaro pelo comandante-geral em evento se deu por “agradecimento à primeira visita oficial do presidente”. Com relação às cessões de policiais, a polícia informou que elas são legais e também ocorreram em governos anteriores. Por sua vez, o Palácio do Planalto não se manifestou.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.