Às vésperas da votação da retomada do voto impresso, bandeira do presidente Jair Bolsonaro, o governo abriu o cofre e pagou R$ 1,03 bilhão de emendas individuais, dinheiro que chegou diretamente à base eleitoral de parlamentares. A operação de transferência foi feita pelo mecanismo do “cheque em branco”, um esquema revelado pelo Estadão, pela qual deputados e senadores transferem recursos a prefeitos e governadores sem fiscalização.

O repasse de dinheiro atingiu um valor bem acima do total de R$ 2,8 milhões liberados nos seis primeiros meses do ano. Dos 229 deputados que disseram sim ao voto impresso, 131, isto é 57%, obtiveram pagamento desse tipo de emenda no dia 2 de agosto, três dias antes da matéria ser analisada em comissão especial. Esse montante se refere às emendas individuais apresentadas ao Orçamento de 2021, não incluindo os restos a pagar de anos anteriores. Do montante liberado, 90,1% foram para deputados (R$ 931,7 milhões), outros 9,% para senadores (R$ 102 milhões).

A PEC 135, que determinava a obrigatoriedade da impressão de cédulas físicas nas eleições, foi arquivada na Câmara por não atingir 308 votos, número mínimo para aprovação de uma emenda constitucional. No placar, 218 votaram não, um absteve, um não votou e 64 se ausentaram. Se por um lado o governo não conseguiu convencer sua base a aprovar a proposta, por outro conseguiu que 113 deputados do PSDB, uma sigla de oposição ao governo, PSD, DEM e MDB, votassem a favor, uma traição às lideranças de seus partidos que fecharam contra o voto impresso.

Historicamente, agosto não está entre os meses que mais concentram pagamentos de emendas individuais apresentadas no mesmo ano. Março, abril, junho e dezembro são os períodos em que mais ocorrem essas liberações, de acordo com dados obtidos pela reportagem no Siga Brasil, painel do Senado com informações sobre orçamento, compiladas a partir de 2016. A quantia de R$ 1 bilhão paga em 2021 é recorde para meses de agosto desde o início da série. Os pagamentos, entre 2016 e 2020, somados, totalizam R$ 1,4 bilhão.

O esquema do “cheque em branco”, criado em 2019, dispensa a necessidade de contratos e convênios e a supervisão de ministérios. Dessa forma, esse tipo de emenda chega na conta das prefeituras em média em 60 dias, enquanto as emendas tradicionais demoram mais de um ano para serem pagas.

Mistério

O deputado e presidente do Solidariedade, Paulinho da Força (SP) avaliou que a liberação de emendas pode explicar o placar de 229 deputados a favor do voto impresso. “Nós não esperávamos aquela quantidade de votos. Calculávamos 150 votos. Essa quantidade toda teve algum mistério, acho que pode ser isso”, disse ao Estadão. “É estranho que, numa véspera de votação, o governo libere recursos nessa quantidade toda. Ficou muito evidente que o governo liberou para angariar voto”, completou. “Então, agora a gente fica sabendo que não foi o tanque que arrumou voto. Foram as emendas.”

No dia da votação, Bolsonaro promoveu um desfile de blindados esfumaçados na Esplanada dos Ministério, o que provocou revolta de lideranças políticas que viram no ato uma tentativa de intimiar o Congresso.

O líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ), afirmou que é no “mínimo” curioso a expressiva liberação de emendas às vésperas da votação. “Teria o governo intensificado a liberação de recursos para influenciar a votação da PEC? Se for isso, é mais um ataque inaceitável à democracia e à independência do Congresso”, disse.

Por sua vez, o deputado Julio Delgado (PSB-MG), cujo partido orientou o voto não, disse que votou sim por convicção própria e chamou de “coincidência” os pagamentos feitos nos dias que precederam a apreciação da proposta pela Câmara. A emenda dele no valor de R$ 1,7 milhão foi paga no dia 2. “Eu só posso dizer que é uma mera coincidência, igualzinho ter a votação na Câmara no dia que os tanques foram para a rua”, afirmou. “Não tenho vínculo com o governo”, garantiu.

Gilberto Nascimento (PSC-SP) que viu cair na conta de municípios paulistas e do governo de São Paulo valores somados de R$ 7,2 milhões de sua emenda no dia 2, disse que votaria sim “independentemente disso”. “Eu não trabalho dessa forma de receber e votar”, afirmou ele, que admitiu já ter tomado conhecimento do pagamento.

Um dos que votaram a favor do voto impresso, o deputado Julian Lemos (PSL-PB) disse que tomou a decisão após ouvir seus eleitores. A emenda individual dele de R$7,6 milhões foi transferida ao governo da Paraíba no dia 2. “Transferências especiais fazem parte das emendas impositivas, o prazo está correto”, afirmou.

A deputada Clarissa Garotinho disse ao Estadão que nem sabia dos pagamentos de R$ 4,5 milhões feito para a prefeitura de Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, reduto eleitoral de sua família, e de R$ 1,85 milhão para o Estado do Rio de Janeiro. A parlamentar ressaltou que sua posição a favor do voto impresso é conhecida.

Vice-líder do governo na Câmara, Cezinha Madureira (PSD-SP), disse que não houve articulação do Planalto pelo voto impresso. “Eu não recebi ligação do governo pedindo voto”, disse. A deputada Renata Abreu (Podemos-SP) afirmou que não viu movimento do governo de oferecer emendas em troca de voto. “Se eu soubesse, tinha ido pedir para liberar as minhas emendas”, disse. Ela comentou que já tinha se posicionado a favor do voto impresso anteriormente e não mudaria de lado “só porque Bolsonaro está defendendo”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.