Reconduzido recentemente ao cargo de procurador-geral da República, Augusto Aras apresentou nesta quinta-feira, 2, uma contundente manifestação contra a tese do “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas e apontou para possíveis violações de direitos humanos na possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) validá-la.

O posicionamento do PGR foi também contrário ao apresentado ontem pelo Advogado-Geral da União, Bruno Bianco Leal, que ao defender os interesses do governo federal alegou insegurança jurídica e ameaça à paz social caso a tese seja derrubada. O presidente Jair Bolsonaro é a favor do marco temporal sob o argumento de que indígenas são usados como massa de manobra e que o processo prejudicará o agronegócio.

Em um discurso de aproximadamente 25 minutos, com referências tão distintas quanto o cacique Raoni e o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill, Aras disse que a Constituição registrou a importância do reconhecimento dos indígenas como os primeiros ocupantes das terras.

“O Brasil não foi descoberto, o Brasil não tem 521 anos, não se pode invisibilizar os nossos ancestrais que nos legaram esse País”, afirmou.

“O dever-jurídico estatal da proteção das terras indígenas não se inicia após a demarcação da área indígena. Antes mesmo de concluída a demarcação, o Estado haverá de assegurar aos indígenas a proteção integral em relação às terras que ocupam, com observância dos direitos constitucionalmente assegurados. Aliás, o processo demarcatório deve transcorrer dentro de um prazo razoável”, seguiu o PGR.

Pelo entendimento do marco temporal, uma terra indígena só pode ser demarcada se ficar comprovado que os indígenas estavam naquele território na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Os defensores da tese, muitos deles ligados ao agronegócio, argumentam que o uso do verbo “ocupar” no tempo presente no texto da Constituição Federal é a prova de que as comunidades indígenas só poderiam reivindicar a posse sobre as terras que ocupavam no momento da aprovação da Carta. Já as lideranças indígenas afirmam que a Assembleia Constituinte trabalhou com critérios de tradicionalidade. Caso os povos originários interessados na demarcação não consigam provar a posse das terras, eles poderão ser submetidos a remoções e impedidos de solicitar novos territórios.

Em seu discurso, o procurador-geral também apontou que a demora na regularização das terras indígenas e a falta de proteção das comunidades durante o processo de demarcação podem configurar violação de direitos humanos.

“O estado de incerteza quanto a esse aspecto já foi responsável pelo derramamento de sangue, suor e lágrima”, disse. “Todas as terras indígenas já deveriam estar demarcadas no Brasil. Há, portanto, uma mora do Estado nesse sentido”, acrescentou.

Aras defendeu que o reconhecimento da ‘posse permanente e usufruto das riquezas’, garantido constitucionalmente aos indígenas, dispensa a necessidade da demarcação.

“A medida demarcatória apenas atribui segurança jurídica, ou seja, esclarece e facilita a reivindicação dessas terras na eventualidade de conflito possessório. De toda sorte, a demarcação é de índole declaratória, não constitutiva portanto”, resumiu o procurador.

O segundo dia de julgamento no Supremo terminou mais uma vez, porém, sem sequer um voto proferido. A sessão teve início quando ainda restavam 17 sustentações orais de amicus curiae – nome em latim dado aos advogados e instituições que ajudam a fundamentar os votos dos ministros – e do próprio PGR.

Entre atrasos no início do julgamento e no retorno do intervalo, nem mesmo o ministro Edson Fachin, relator do caso, conseguiu proferir seu voto. O magistrado já havia apresentado sua posição contrária ao marco temporal durante a sessão realizada no plenário virtual da Corte, mas precisará reler a fundamentação da decisão porque houve um pedido de destaque (encaminhamento do processo para análise presencial), apresentado em junho deste ano pelo ministro Alexandre de Moraes.

Pela ordem definida para as manifestações, o segundo dia de sessão foi marcado pela defesa do marco temporal. A maioria das sustentações foi de representantes de sindicatos e organizações vinculadas a agricultores, cujos argumentos alegam que a eventual derrubada da tese ataca os direitos de proprietários rurais, setores do agronegócio, assim como a segurança jurídica do País.

“É preciso ser observado neste julgamento a estabilidade da paz social”, disse Luana Ruiz Silva de Figueiredo, representante da Organização Nacional de Garantia ao direito de Propriedade. O argumento foi utilizado várias vezes durante a sessão de hoje. Os representantes de produtores rurais indicam a possibilidade de conflitos no campo, caso a tese seja considerada inconstitucional.

“Enquanto o indigenato segrega a sociedade brasileira, nega o direito de propriedade, colocando em risco as liberdades dos brasileiros e estabilidade do estado democrático de direito, o marco temporal ao contrário: recepciona e acomoda todos nós e não reflete retrocesso. Não havendo subtração de direitos. O marco temporal garante o direito dos índios, sim”, completou.

Para os advogados dos indígenas, o reconhecimento da constitucionalidade do marco temporal pelos ministros do STF deve agravar os processos de violação de direitos indígenas em disputas por terras no interior do País. “Adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos”, disse Eloy Terena, convidado para se manifestar pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Dados coletados pelo monitoramento do Instituto Socioambiental (ISA) de decisões publicadas no Diário Oficial da União (DOU), apontam para a existência de 303 terras indígenas sem homologação presidencial, o que significa que o processo de demarcação está em tramitação. As terras em contestação somam 11 mil hectares, ocupados por aproximadamente 197 mil indígenas.

Lideranças indígenas e antropólogos afirmam que o reconhecimento do marco temporal pode inviabilizar a conclusão desses processos de demarcação, assim como estimular iniciativas de reintegração de posse por fazendeiros.

Na contramão de indigenistas, o advogado Paulo Dorón, representante da Sociedade Rural Brasileira, argumentou no julgamento que “o caso resume-se à ideia de confiança com relação à ordem constitucional vigente a partir de 1988”.

“É preciso ponderar e flexibilizar para que interesses aparentemente antagônicos entre proprietários de terras e indígenas que ocupam terras tradicionais sejam passíveis de conviver. Só há uma forma de conviver, que é mediante à confiança na ordem constitucional estabelecida, sem rompimentos”,disse Dorón.