30/10/2021 - 8:16
A execução de guerrilheiros suspeitos de traição por decisão da direção da organização a que pertenciam é um dos aspectos mais polêmicos da ação dos grupos que pegaram em armas contra a ditadura militar. É sobre quatro casos comprovados de assassinato de colegas que não resistiram à tortura e forneceram dados que levaram à captura de companheiros ou que poderiam trair que o jornalista Lucas Ferraz trata em seu livro Injustiçados, execuções de militantes nos tribunais revolucionários durante a ditadura (Companhia das Letras).
O título é ele mesmo uma sentença sobre cada vítima da violência revolucionária. O autor lembra que os executores tinham diante de si inocentes, ao mesmo tempo que não atingiram os verdadeiros traidores, os que receberam dinheiro para delatar ou mudaram de lado, como José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo.
É um julgamento. Ferraz aborda quatro casos ocorridos em centros urbanos. As vítimas foram Márcio Leite Toledo, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira Rolim. Os três primeiros foram mortos por companheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo fundado por Carlos Marighella, enquanto o último foi executado por remanescentes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
‘CACHORROS’
Todos foram mortos entre 1971 e 1973, quando a luta armada estava derrotada, e o que restava dos grupos que pegaram em armas vivia acossado pela ameaça da prisão, tortura e morte nos Destacamentos de Operações Especiais (DOI). Esse ambiente ficou ainda mais envenenado com a tática dos órgãos de repressão de cooptar militantes para transformá-los nos “cachorros”: colaboradores que entregavam os colegas. Tinham contrato e salário.
Criou-se o que o autor chama de a “síndrome de Severino”, a desconfiança generalizada nascida em razão de traições, como a do militante José da Silva Tavares, o Severino, que fez um acordo com o delegado Sergio Fleury e entregou o líder da ALN Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, em 1970.
Assim, Márcio Toledo foi executado pela ALN porque a “revolução não admitia recuos”. Eram chamados de traidores os que, sob tortura, abriram informações aos repressores, como se o militante tivesse o dever de morrer calado. Rolim não foi capaz de cumprir essa obrigação, e isso foi a sua perdição.
O historiador Jacques Le Goff escreveu que o colega Marc Bloch, apesar de detestar historiadores que “julgam em lugar de compreender”, não deixava, por isso, de enraizar “mais profundamente a história na verdade e na moral”. “A ciência histórica se consuma na ética. A história deve ser verdade; o historiador se realiza como moralista, como justo.” Na falta de guias para jornalistas que se aventuram na história, Le Goff fornece um caminho não muito diverso daquele do editor do Washington Post Ben Bradlee, responsável por publicar os Papéis do Pentágono.
ESQUECIMENTO
Como em toda obra, é possível achar falhas. E a maior delas talvez seja a avaliação do papel de Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, líder da ALN e participante confesso das ações que mataram Toledo e o empresário Henning Boilesen, um colaborador do DOI.
O livro não é um estudo sobre a violência revolucionária, nem procura igualar a violência do opressor à do oprimido. As técnicas usadas são as do jornalismo. E registra um capítulo que permaneceu entre o esquecimento de quem o protagonizou e o uso vulgar desses crimes por quem busca justificar a tortura e o assassinato cometidos por agentes do Estado.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.