14/02/2022 - 8:58
Após 16 anos de casamento e quatro filhos, Baltazar e Ana Paula se separaram. O roteiro dolorido do divórcio, que às vezes inclui brigas e discussões, subiu para o nível de alerta: ela foi à Justiça para relatar ameaças do ex e buscar proteção. “Ele disse que ia pegar uma arma raspada e acertar as contas.” Ana Paula conseguiu medida protetiva com base na Lei Maria da Penha – providência tomada pelos tribunais para evitar que as ameaças se transformem em agressões físicas ou assassinatos.
Baltazar tem de respeitar a distância de 400 metros dela até o fim da pandemia. Além disso, a Justiça o encaminhou para dez encontros de grupos de reflexão para autores de violência contra a mulher.
Na primeira reunião com outros homens em situação semelhante, ele chegou bravo. Nega a ameaça, disse que não foi ouvido nem queria estar ali. Depois de seis sessões semanais, todas virtuais por causa da covid-19, Baltazar conta agora gostar do espaço para trocar ideias. “No grupo, ninguém é julgado.” Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos envolvidos.
O Brasil tem 312 grupos de reflexão para autores de violência contra a mulher no País. Concentrados principalmente no Sul e no Sudeste, eles atenderam 62.554 homens de 2012 a 2020. Muitos começaram a atuar nos últimos três anos, a partir das mudanças legislativas. Desde abril de 2020, a presença do autor de violência nos centros de reflexão integra o conjunto de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha. Em geral, os grupos são vinculados a ONGs, núcleos municipais de assistência social, centros comunitários ou setores dos tribunais de Justiça. A maioria dos coordenadores é voluntário.
Esses dados são do mapeamento inédito Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de violência contra as mulheres no Brasil – mapeamento, análise e recomendações, escrito por Adriano Beiras, Daniel Fauth, Salete Sommariva e Michelle Hugill. O estudo foi feito pelo Colégio de Coordenadores Estaduais da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário, pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Coordenador do mapeamento, Beiras afirma que os grupos reflexivos tentam interromper a escalada de violência doméstica que podem culminar no feminicídio. No País, 1350 mulheres morreram dessa forma em 2020, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 294.440 medidas protetivas em 2020, um aumento de 4,4% em relação ao ano anterior.
Embora não haja levantamentos nacionais sobre a taxa de reincidência dos participantes dos núcleos, os grupos relatam que o índice é baixo após as atividades psicoeducativas. Segundo o psicólogo e sociólogo Flávio Urra, coordenador do grupo de reflexão E agora, José, parceria entre a ONG Entre Nós e a prefeitura de Santo André, na Grande São Paulo, em sete anos, foram acolhidos cerca de mil homens e apenas duas reincidências foram registradas. Ricardo Bortoli, professor da UFSC em Blumenau e coordenador dos grupos de reflexão desde 2004, classifica como “rara” uma reincidência. Em Blumenau, são atendidos cerca de 200 homens por ano.
O projeto Tempo de despertar, idealizado pela promotora de Justiça Gabriela Manssur em 2014, em São Paulo, registra taxa de reincidência de 2%. Antes dos grupos reflexivos, o índice era de 65%. O Tribunal de Justiça do Paraná, Estado com maior número de grupos, informa que não há controle de reincidência padronizado, mas informa que 1.450 homens participaram dos grupos entre 2012 e 2021.
A reincidência também é um ponto de atenção para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como avalia Tânia Reckziegle, presidente da Comissão Permanente de Políticas de Prevenção às Vítimas de Violências, Testemunhas e de Vulneráveis.
“Grande parte dos casos de violência doméstica e familiar é de autores reincidentes. Os grupos reflexivos constituem um método essencial para romper a reincidência”, diz a conselheira do CNJ. “O primeiro passo é conscientizar a vítima sobre a violência. O segundo é tentar conscientizar o agressor e auxiliá-lo para que ele não venha a repetir o ato de violência.”
Nesse contexto, Beiras destaca a importância de afastar a estigmatização dos autores de violência. “Falar ‘homem autor de violência’ é dizer que ele cometeu um ato, mas que essa atitude pode ser separada da sua identidade. Por isso, é recomendável evitar ‘agressor’.”
Pensar nessas estratégias alternativas para lidar com o autor da agressão, porém, ainda é tema controverso. “A punição, em si, não é suficiente. É preciso refletir sobre o machismo estrutural”, afirma Ricardo Bortoli. “Tratar a questão da violência contra a mulher sem observar a ressignificação dos homens é como tentar secar o chão com a torneira aberta”, explica o especialista. Para Urra, a identidade masculina muitas vezes é atrelada a posturas violentas.
RECOMENDAÇÕES
A partir do mapeamento, os pesquisadores oferecem recomendações e critérios mínimos para amparar as iniciativas. Entre as propostas estão a formação de grupos de 10 a 20 homens, a presença de dois facilitadores/as e a realização de cerca de 10 sessões. A capacitação dos facilitadores é outro aspecto relevante. “Vemos a necessidade de maior profissionalização, avaliações de eficácia, formação específica em gênero e masculinidade e metodologias ativas para mudanças e equidade de gênero”, afirma Beiras.
O estudo também aponta que um dos principais desafios é a continuidade das iniciativas. Nesse aspecto, os pesquisadores defendem que os grupos se consolidem como políticas públicas com atuação permanente. Os critérios para os novos grupos envolvem ainda a forma correta de se referir a eles. A expressão “grupo reflexivo ou psicoeducativo” é preferível a grupo educativo. Isso se justifica, na visão dos pesquisadores, pois a ideia não é educar e sim refletir, além de promover mudanças de pensamentos e ações.
INDIGNAÇÃO
Regiane Shimith, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Pirajuí (SP), afirma que a maioria dos homens chega ao grupo da região como Baltazar, lá do início do texto. Revolta. Inconformismo. “Briga familiar” é uma expressão comum de quem chega. Em geral, eles se identificam mais como vítimas do que como autores de violência. “Eles dizem que a culpa é da mulher e são inocentes”, diz.
O Estadão acompanhou um encontro na quinta-feira. Os facilitadores não perguntam por que estão ali. Ninguém sabe o que o outro fez. Tudo é prático, muita conversa, sem leituras teóricas. As câmeras permanecem abertas, todo mundo fala e presta atenção no que o outro fala.
Durante a conversa de duas horas, sete homens de Estados e idades diferentes conversaram sobre a divisão de tarefas domésticas em suas vidas. O desafio era relatar a sua rotina, mas também citar a rotina de uma mulher – pode ser a companheira, a mãe ou a irmã.
A ideia é refletir sobre a divisão de responsabilidades na casa (ou a falta dela) e os papéis de cada um. Carlos leva os filhos à escola; Antônio diz que ajuda a varrer a casa, mas, no relacionamento anterior, só ia à cozinha para pegar cerveja na geladeira. “Não existe mais machismo na sociedade. Lavar, cozinhar e passar são coisas que os homens fazem”, disse um dos participantes.
Por trás dos relatos que mostram compartilhamento com as companheiras, o facilitador observa. “Ouvi algumas falas sobre a mudança na sociedade, mas é interessante falar do ‘eu’, da figura de cada um. A mudança tem de ser de dentro para fora”, pontua.
“No primeiro encontro, pensei: eu não estou mais com a pessoa que eu agredi. Não tenho mais esse problema”, diz um homem que vive em Santos (SP) ao Estadão, após o encontro. “Eu só falei do meu caso no final do terceiro encontro. Foi aí que começou a cair a ficha. Eu vi que tinha coisas para mudar. Comecei a ter mais vontade de ir”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.