08/04/2022 - 20:34
Quando foi à Rússia em visita oficial a Vladimir Putin, duas semanas antes de a guerra contra a Ucrânia eclodir, o presidente Jair Bolsonaro atendia a pedidos enfáticos da ministra Tereza Cristina. À época, a dona da pasta da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tinha na manga uma grande cartada como sua última ação no
comando do ministério: anunciar um audacioso plano para aumentar a produção de fertilizantes produzidos em território brasileiro. E a Rússia estava intimamente ligada a isso.
A articulação dessa agenda movimentava os bastidores de Brasília há meses. Em salas fechadas do Mapa e da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, representantes de nove ministérios e entidades como Embrapa e Ibama se debruçavam sobre documento escrito em 2008, na gestão do então ministro da Agricultura Reinhold Stephanes, após uma grave crise econômica global que levou a um pico de alta no preço de fosfato, da amônia e do potássio. Aquele primeiro texto estava agora servindo de base para a redação do Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) que, inicialmente, estava programado para ser anunciado como uma espécie de presente de despedida de Tereza Cristina ao agronegócio, o que deveria acontecer poucos dias antes de sua desincompatibilização do governo para concorrer ao Senado.
Em paralelo ao trabalho burocrático dos técnicos e especialistas, a dama de aço do governo Bolsonaro intensificou o que o time de trabalho batizou de “A Diplomacia dos Fertilizantes”. Primeiro destino: Rússia. Em 17 de novembro, a ministra se encontrou com representantes de empresas locais de fertilizantes e do governo Putin para uma reunião que tinha como objetivo oficial garantir o fornecimento do insumo a preços palatáveis aos produtores brasileiros. Após o encontro com o ministro do Desenvolvimento Econômico da Rússia, Maksim Reshetnikov, a própria ministra declarou o tom da conversa. “O ministro reforçou que o Brasil é um parceiro estratégico e que podemos ficar absolutamente tranquilos com o fornecimento de potássio e fósforo”, disse na ocasião.
Após esforços do governo para atrair investimentos russos, o brasil vê como incerto o futuro das empresas no país
NOVO RUMO Segundo fontes da Esplanada dos Três Poderes, no entanto, o encontro serviu para uma pré-apresentação do PNF como ferramenta para, de forma geral, atrair o capital russo para o mercado de fertilizantes brasileiro e, em particular, para acelerar a compra da Unidade de Fertilizantes Nitrogenados (UFN3) da Petrobras em Três Lagoas (MS) pelo grupo russo Acron. Segundo o diretor da Efficienza Negócios Internacionais Fábio Pizzamiglio, quando começou a trabalhar no PNF, ano passado, o foco do governo era a Rússia. “Parecia uma boa ideia”, afirmou o executivo. Segundo o diretor de Projetos do Mapa, Luis Rangel, o plano mostrava uma ação do governo em um ponto nevrálgico para os russos: “Se o Brasil tem um plano estatal para o setor, então o investidor se sente seguro”, afirmou. Foi essa a segurança que Tereza Cristina foi dar aos russos.
Menos de três meses depois, a primeira grande ação da Diplomacia dos Fertilizantes surtia efeito. No dia 4 de fevereiro, em visita a Três Lagoas (MS), cidade onde as obras da fábrica de fertilizantes da Petrobras que já consumiram R$ 3 bilhões em investimento estão paradas desde 2014, Tereza Cristina anunciava: “Concluímos a venda da UFN3 para a Acron”. Ali, o passo inicial para que a meta de reduzir a dependência da importação de fertilizantes de 85% para 60% em 30 anos, como prevê o PNF, era dado. A narrativa estava se construindo como planejado. A etapa seguinte era um apertar de mãos entre os presidentes dos dois países, Rússia e Brasil, nas terras de lá.
Foi neste contexto que a viagem de Jair Bolsonaro à Moscou foi agendada para o dia 14 de março. Cancelar a visita a Putin, que havia sido combinada muito antes da escalada do conflito com a Ucrânia e como queriam os Estados Unidos, seria, portanto, uma desfeita ao país que livrava a Petrobras de um elefante branco do qual tentava se desfazer desde 2019. Para o advogado especialista em governança Emanuel Pessoa, a decisão do Planalto em manter a ida do presidente brasileiro foi uma atitude acertada, ainda mais diante do fato de que do ponto de vista do conflito geopolítico o Brasil é um agente irrelevante. “Cancelar a viagem só iria irritar o presidente da Rússia que nos vende 20% dos fertilizantes que consumimos e que tinha acabado de anunciar um investimento no Brasil”, afirmou.
Tudo ia bem, mas no dia 24 de fevereiro a guerra começou de fato. Sem querer, ao entrar na Ucrânia, a Rússia atingiu como um míssil o Ministério da Agricultura brasileiro. A narrativa em construção ganhou dúvidas. O que acontecerá com os planos anunciados pelo vice-presidente da Acron, Vladimir Kantor, que previa começar as obras da unidade ainda em julho? Até os maiores especialistas do setor como Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e atual coordenador do Centro de Agronegócios da FGV, não têm uma resposta clara. “A Acron agora é uma interrogação”, afirmou. A empresa russa não se manifestou mais sobre o assunto, tampouco o fez o governo federal.
Em funcionamento, a UFN3 teria capacidade de produção de 3,6 mil toneladas de ureia e de 2,2 mil toneladas de amônia por dia, ou cerca de 1,3 milhão e 803 mil toneladas anuais, respectivamente. A produção é irrisória: não chegaria nem perto de atender a demanda do mercado doméstico de mais de 45 milhões de toneladas de fertilizantes em geral, o que coloca o Brasil no posto de quarto maior consumidor do planeta, absorvendo 8% da produção de mundial de fertilizantes. Ainda assim, o começo das atividades seria uma boa sinalização para outros investidores olharem para o País, ainda mais se o pontapé inicial das obras acontecesse próximo à data inicialmente programada para a divulgação do Plano Nacional de Fertilizantes.
Para o diretor técnico adjunto da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Reginaldo Minaré, o plano indica uma mudança significativa na vontade política para a construção de uma indústria essencial ao agro. “Nos últimos 25 anos não houve esforço do governo para a construção dessa indústria, a despeito da alta demanda interna.” Por uma infeliz coincidência, esse novo arcabouço chega em um momento em que os russos, detentores das melhores tecnologias de produção, estão com outras prioridades e sofrendo com sanções econômicas que podem prejudicar até mesmo as empresas de lá já instaladas por aqui.
RUSSOS NO BRASIL Este é o caso da Uralkali. Considerada a 9ª maior produtora de fertilizantes à base de potássio do mundo com faturamento de US$ 2,7 bilhões em 2020, a empresa anunciou em dezembro do ano passado a compra de 100% da UPI Norte, acionista da maior distribuidora brasileira de fertilizantes, a FertiGrow. Em comunicado emitido na época, o CEO da Uralkali Trading, Alexander Terletsky, afirmou que a aquisição fazia parte de um plano de fortalecimento do grupo nos maiores mercados compradores do insumo. “O Brasil é um dos maiores consumidores de fertilizantes minerais, então a aquisição da FertGrow ajudará a otimizar significativamente as operações da Uralkali na América Latina”, disse Terletsky. A reportagem tentou contato com a empresa para questionar sobre os possíveis impactos da guerra em sua operação brasileira, mas não obteve sucesso.
A Uralkali não foi a única a enxergar na expansão do agronegócio nacional, que deve alcançar Valor Bruto de Produção (VBP) de US$ 1,2 trilhão este ano, como uma grande oportunidade para a supremacia russa no mercado global de fertilizantes. No mesmo mês de dezembro de 2021, o grupo russo EuroChem, que desde 2016 já tinha o controle acionário da Fertilizantes Tocantins, anunciou a compra de 51,48% da Heringer em um negócio de R$ 554,6 milhões que foi celebrado por analistas como um passo importante para o aumento da competitividade do setor. Dados sobre participação de mercado de 2017 indicam que quatro grandes companhias dominam o setor no Brasil. A Heringer, na 4ª colocação com 13% de participação, está entre elas. Perde para a norueguesa Yara (25%), para a americana Mosaic (20%) e para a brasileira Fertipar (15%). Os demais 26% são pulverizados. Agora, com a união, a expectativa do grupo EuroChem era alcançar 20% de participação no País.
Diante do novo cenário, o coordenador do Mestrado Profissional em Agronegócio, Felippe Serigati, afirma que “o destino das empresas russas no Brasil é completamente incerto”. Fábio Pizzamiglio, da Efficienza, concorda, afinal não é claro como ficará a circulação de dinheiro russo no mundo. “Além da forte desvalorização do rublo, a Rússia terá que aumentar as reservas internacionais e repatriar divisas”, afirmou Pizzamiglio. Outras dúvidas dizem respeito a ferramentas para a circulação do capital russo no mercado internacional, uma vez que foram excluídos do sistema Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift),além das incertezas sobre a priorização da utilização de recursos.
Plano Nacional dos Fertilizantes deve atrair investidores estrangeiros que miram crescer no 4o maior mercado consumidor do insumo
Todas essas pontas soltas impactam o Brasil em um momento em que o País se preparava para colher melhorias no ambiente de negócios feitas nos últimos anos e de uma vontade da Rússia de diversificar a origem de sua produção. Para o sócio do escritório Feijó Lopes, Lúcio Feijó Lopes, a conjunção da vontade dos dois países, no pré-guerra, teria chance de atrair novas tecnologias para o desenvolvimento do setor. “Nos últimos dez anos, o Brasil aperfeiçoou a Lei da Liberdade Econômica, a Lei do Agro, e garantiu cumprimento de contratos”, afirmou. No mesmo momento, disse Lopes, a Rússia “fazia um movimento para verticalizar a cadeia de fertilizantes, buscando um contato direto com seus consumidores finais, como o produtor brasileiro”. Parecia o casamento perfeito.
IMPORTAÇÃO Para o agronegócio nacional, a situação fica ainda mais grave uma vez que 20% da importação brasileira de fertilizantes vem da Rússia e encontrar novos fornecedores não será fácil. Segundo o sócio da Santos Neto Advogados, Frederico Favacho, “ainda que China e Canadá pudessem fornecer parte dos insumos, a produção nestes países é justa”. Por isso, segundo ele, a substituição não seria possível no curto prazo. Roberto Rodrigues, da FGV, ainda aponta a Jordânia como uma opção, mas essa alternativa é também inviável com a agilidade necessária. “Não temos relações com eles e construí-las leva tempo”, afirmou.
Neste cenário, o Plano Nacional de Fertilizantes ganha mais peso. Para Fábio Pizzamiglio, da Efficienza, “o governo começou a agir, mas o plano é de longo prazo”. Segundo estipulado no próprio PNF, diminuir a dependência do Brasil para 60% levaria cerca de 30 anos. Ainda entram nessa conta, a necessidade de mudanças regulatórias profundas já que, especialmente em potássio, a extração dependeria de minas em terras protegidas, como as indígenas na Amazônia. Uma situação que Jair Bolsonaro tem usado para tentar emplacar o Projeto de Lei 191/2020, que libera o garimpo nestes territórios. E aí o Brasil enfrentará outro problema com o recrudescimento da União Europeia em barrar a compra de commodities agrícolas ligadas ao desmatamento. Além de um desastre sob qualquer ângulo humanitário, a guerra da Rússia impactou o pacífico e fundamental agronegócio brasileiro colocando a segurança alimentar do planeta sob real ameaça.