17/07/2019 - 14:19
Pesquisadores e o setor produtivo brasileiros integram o recém-lançado Aquavitae, o maior consórcio científico já realizado para estudar a aquicultura no Atlântico e no interior dos continentes banhados por esse oceano. Orçado em oito milhões de euros oriundos majoritariamente do programa Horizon 2020, da União Europeia, o projeto reúne 29 instituições de 16 países americanos, africanos e europeus com o objetivo de aumentar a produção aquícola por meio de pesquisas a serem desenvolvidas nos próximos quatro anos.
“Isso se dará, principalmente, pelo desenvolvimento de novas espécies de nível trófico (alimentar) baixo, que estão na base da pirâmide alimentar, como as algas e moluscos, por exemplo”, explica o pesquisador da Embrapa Pesca e Aquicultura (TO) Lucas Torati, um dos coordenadores do Aquavitae no Brasil. Com isso, os cientistas pretendem trabalhar em sistemas nos quais sejam reduzidos os desperdícios com cada nível trófico utilizando resíduos de outro.
“Por exemplo, ao se colocar em um mesmo sistema de produção um peixe carnívoro com outro filtrador, o resíduo de ração deixado pelo carnívoro vai ser nutriente para as algas que, por sua vez, serão consumidas pelos peixes filtradores. Um sistema de produção diferente, chamado de multitrófico”, ilustra Torati.
Fruto de dez anos de articulaçõesO chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Pesca e Aquicultura, Eric Arthur Routledge, considera o consórcio internacional uma valiosa conquista. “Ele é fruto de dez anos de articulações que envolveram o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MICTI) com a participação da Embrapa e algumas universidades brasileiras de referência em aquicultura”, destaca. Routledge conta que essas articulações geraram os subsídios para que o governo brasileiro e a Comunidade Europeia formalizassem, em julho de 2017, o acordo de cooperação em pesquisa e inovação do Atlântico, o “Belém Statement”, assinado por Brasil, África do Sul e União Europeia. Isso viabilizou pela primeira vez a participação do Brasil no consórcio internacional que aprovou, no fim de 2018, o projeto Aquavitae, cuja primeira reunião, que marcou o início das atividades, ocorreu no início de junho deste ano, na Noruega. |
No Brasil, as principais pesquisas envolverão a produção de pirarucu (Arapaima gigas), tambaqui (Colossoma macropomum) e camarão (Litopenaeus vannamei), bem como outras espécies de interesse para o País, como de ostras e de macroalgas. Além da Embrapa Pesca e Aquicultura, integrarão os trabalhos a Embrapa Meio-Norte (PI), a Embrapa Amazônia Ocidental (AM) e a Embrapa Tabuleiros Costeiros (SE). Também participarão instituições de ensino reconhecidas na pesquisa aquícola, como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A Embrapa pretende aperfeiçoar os protocolos para reprodução do pirarucu, em parceria com a Unesp e a Nofima, o instituto norueguês de pesquisa em aquicultura e alimentos que coordenará o Aquavitae. Os cientistas brasileiros também querem contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas e governança em aquicultura, estudar o desenvolvimento de protocolos de produção de tambaqui e pirarucu, além de realizar pesquisas sobre a cadeia de valor desses dois peixes.
“No caso do pirarucu, vamos fazer um estudo para tentar avançar no controle da reprodução utilizando estímulos hormonais e ambientais. É um trabalho ambicioso e necessário que utilizará todo o conhecimento e tecnologias existentes nessa área”, detalha Torati.
Forte parceria com o setor produtivo
Uma das principais características do Aquavitae é a expressiva participação do setor produtivo em todos os países em que o projeto será executado. No Brasil, há sete parceiros da indústria, como a Primar Aquacultura, a primeira fazenda de aquicultura orgânica certificada do Brasil, e a Associação Brasileira de Piscicultura (Peixe BR). “As pesquisas são realizadas em sintonia com as demandas do setor produtivo”, afirma Torati.
Além de estudos de caso – trabalhos focados em uma espécie, processo ou produto –o Aquavitae também envolverá trabalhos do tipo workpackages, que são temas transversais que englobam vários estudos de caso. Ao todo, o projeto abriga 11 estudos de caso e nove workpackages.
“Entre os workpackages há pesquisas com utilização de sensores, integração de dados, internet das coisas, segurança alimentar, nutrição, monitoramento ambiental, sustentabilidade, análises socioeconômicas, governança e políticas na aquicultura, entre outros”, enumera Torati. As instituições que vão trabalhar em estudos de caso possuem parceiros industriais atrelados.
Tambaqui maior
O peixe de origem brasileira mais cultivado no País tem muito a crescer em produção e em tamanho. É no que acredita a pesquisadora Fernanda Almeida, da Embrapa Amazônia Ocidental. Ela foi uma das responsáveis pela identificação da fase em que ocorre a diferenciação sexual do peixe. Essa descoberta deve contribuir para o desenvolvimento de tecnologias que vão impulsionar a produção. “O peixe poderá apresentar tamanho e peso bem maiores que o tambaqui atual”, prevê a cientista.
Ela explica que o Aquavitae também utilizará engenharia genética para estabelecer protocolos eficientes de produção do tambaqui e para aprimorar índices produtivos importantes como crescimento e qualidade da carne.
Sistemas produtivos da espécie em viveiros escavados e em barragens também precisam ser aprimorados, de acordo com a especialista. Apesar de apresentar bom desempenho em produções intensivas, o tambaqui é exposto continuamente a vários fatores de estresse, como alterações na química da água, altas densidades de estocagem, manuseio excessivo e uso indiscriminado de drogas no tratamento de doenças. “Estudos são necessários para aprimorar ainda mais a criação e causar menos impacto ao meio ambiente”, recomenda a pesquisadora.
Camarões, algas e ostras no mesmo espaço
Um sistema de criação intensivo de alta produtividade que permite o uso de menor quantidade de água, além de ter menos necessidade de tempo e apresentar menor conversão alimentar. Esse é o Bioflocos, sistema que pesquisadores brasileiros vão desenvolver para a cultura de camarão, macroalgas e ostras no âmbito do “Estudo de Caso 5: Biofloco em sistema integrado multitrófico e Sistema integrado multitrófico em viveiro”, feito em parceria entre UFSC, Unesp e Embrapa Meio-Norte.
“No entanto, alguns gargalos tecnológicos ainda existem ao longo do projeto para possibilitar a aplicação da tecnologia em escala industrial no Brasil”, revela a pesquisadora da Embrapa Janaína Kimpara, informando que a UFSC será a responsável por esse desafio e que as equipes da Embrapa e da Unesp atuarão no design de um sistema de produção integrada de camarões com organismos de baixo nível trófico, como macroalgas e ostras, em parceria com a empresa Primar Aquicultura.
A cientista conta que os camarões, que são carnívoros, se alimentam de organismos bentônicos nos viveiros; as macroalgas são autotróficas e assimilam nutrientes inorgânicos dissolvidos; e as ostras, filtradoras, nutrem-se das partículas orgânicas na coluna d’água. “Assim, um único espaço resulta em três produtos diferentes, o que, além dos ganhos ecológicos citados, permite maior diversificação de produtos e mercados para o produtor, além do aumento da resiliência da fazenda”, ressalta a pesquisadora.
O projeto ainda prevê estudos para a redução de impactos ambientais, diminuindo e emissão de efluentes ou destinando-os a outras aplicações para que não sejam lançados no ambiente. Kimpara explica que os restos de alimentos não consumidos pelos camarões são assimilados por microrganismos e geram alguns compostos que costumam ser lançados no ambiente natural. “Esses compostos podem ser aproveitados como insumos para outras atividades aquícolas em sistemas integrados multitróficos”, afirma.
Inserção no mercado de macroalgas
Um dos focos do projeto é o estudo da viabilidade técnica e econômica do cultivo de macroalgas e a proposição de modelos de negócios para a exploração da atividade sobre bases sustentáveis.
Será avaliada a viabilidade técnica da produção de algas em sistemas de cultivo de camarões. “Calcularemos o índice de sustentabilidade dos cultivos utilizando indicadores multicritério nas dimensões econômica, social e ambiental. Paralelamente, será realizado um estudo de mercado para comercialização de produtos a partir de macroalgas marinhas para alimentação e cosméticos”, informa a pesquisadora.
Após esse estudo, está prevista a elaboração de modelos de negócios para subsidiar o desenvolvimento da produção de macroalgas no Brasil, para o atendimento dos mercados alimentício e cosmético.
As macroalgas no mundo
As macroalgas marinhas são utilizadas em todo o mundo em uma enorme gama de aplicações, sendo consumidas in natura ou em produtos provenientes das indústrias alimentícia, de cosméticos, de tintas, entre outras.
De acordo com o último relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2014 foram produzidos 27,3 mil toneladas de macroalgas marinhas no mundo. Isso corresponde a mais de 50% do total da produção aquícola marinha mundial.
Em 2014, o Brasil importou US$ 8,77 milhões em produtos provenientes de macroalgas da China (63%), Filipinas (17%) e Indonésia (11%), conforme os últimos dados do Observatory of Economic Complexity.
Os valores globais das macroalgas processadas industrialmente têm sido calculados na ordem de um bilhão de dólares e a demanda desses produtos tem sido incrementada em cerca de 10% ao ano,
Foto: Janaina Kimpara
Ostras em águas mais quentes
Um dos principais objetivos do Aquavitae no Brasil é promover avanços tecnológicos para expandir o cultivo de ostras da espécie nativa Crassostrea gasar em regiões mais quentes, como o litoral do Norte e Nordeste. Essa expansão está diretamente ligada à domesticação e avanços das bases tecnológicas para a espécie, segundo explica o pesquisador Jefferson Legat, da Embrapa Tabuleiros Costeiros.
O cientista informa que 90% das ostras cultivadas no País vêm das águas frias de Santa Catarina, onde predominam o cultivo e consumo da ostra do Pacífico Crassostrea gigas, cuja produção está restrita a ambientes com temperaturas mais baixas. “Águas mais quentes comprometem as taxas de crescimento e sobrevivência dessa espécie”, detalha Legat.
“A produção de ostras no Norte e Nordeste é limitada pelas dificuldades em separar corretamente as espécies de ostras nativas para cultivo, em obter sementes de forma regular para suprir os cultivos de engorda e adequar o melhor sistema de engorda para as diferentes regiões do País”, conta o cientista, que trabalhará com Alitiene Pereira e Ângela Legat, também pesquisadoras da Embrapa.
O Aquavitae unirá esforços a outros projetos em andamento que trabalham o mesmo tema como: “Bases tecnológicas para a produção sustentável de ostras nativas no Norte e Nordeste (OstraNNE)” e “Aquicultura com Tecnologia e Sustentabilidade (Aquitech)”.