Um estudo ainda mantido em sigilo pela Polícia Militar de São Paulo coloca em xeque uma das mais polêmicas promessas do governador eleito, Tarcísio de Freitas (Republicanos). O trabalho concluiu que o programa de câmeras instaladas nos policiais militares, que Tarcísio e os bolsonaristas querem rever, provocou um aumento de 24% do número de apreensões de armas e de 102% dos registros de casos de violência doméstica, além de crescimento de 78% dos casos de porte de drogas.

Ou seja, o equipamento aumentou a efetividade da PM no combate aos agressores de mulheres, além de tornar mais difícil a vida de outros criminosos. Ocorrências que costumavam ser subnotificadas passaram a ser registradas pela polícia. É como se a corporação tivesse adotado a política de tolerância zero contra o crime. Houve ainda queda do número de policiais mortos em serviço e de 57% dos casos de pessoas mortas em decorrência da ação policial.

As conclusões do estudo potencialmente esvaziam o discurso adotado na campanha eleitoral pelo governador eleito e pelo seu futuro secretário da Segurança Pública, o deputado federal reeleito e capitão Guilherme Muraro Derrite (PL) – de que as câmeras inibiriam, diminuiriam e constrangeriam os policiais durante o trabalho. A revisão do programa enfrenta resistência na cúpula das forças de segurança do Estado.

O estudo foi encomendado pelo comando da PM ao Centro de Ciência Aplicada em Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV). Ele acompanhou a evolução da criminalidade em áreas de companhias antes e depois da adoção das Câmeras Operacionais Portáteis (COP) e a comparou com os dados de unidades que nunca usaram o equipamento, entre junho de 2021 e julho de 2022.

“Além de violência doméstica, houve aumento no volume de notificações de ocorrências de baixo potencial ofensivo, como furtos, discussões, brigas, agressão e ameaça, mas não em ocorrências de roubos, homicídios, drogas e acidentes de trânsito”, diz o estudo, concluído em outubro deste ano.

Segundo os dados dos boletins da PM, cada uma das 179 unidades policiais que trabalham com as câmeras registrou um aumento de 28 registros de crimes, em média, por companhia, por bimestre, o que equivale uma acréscimo de 12% de variação em comparação com a evolução do grupo sem câmera. Foi entre os PMs com as câmeras que se verificou o aumento dos boletins de violência doméstica – em média, 9 casos a mais feitos em cada companhia policial.

Esses foram os dados que convenceram o governador Rodrigo Garcia (PSDB) a manter o projeto como está. Ele chegou a levantar dúvidas sobre a medida até que visitou o quartel das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) e conversou com coronéis que demonstraram como o programa estava tornando a PM mais eficiente no combate ao crime e fornecendo aos tribunais provas irrefutáveis da conduta policial.

Mortes

O estudo é assinado pelos professores Joana Monteiro (FGV), Leandro Piquet (USP), Eduardo Fagundes (FGV) e Julia Guerra (FGV). Ele usa a econometria e mostra que as companhias que tiveram câmeras instaladas tinham em média 0,42 mortes provocadas por policial a cada bimestre, e as sem câmera, 0,31 casos. Em média, o número de mortes decorrentes de intervenção policial foi reduzido em 57% em relação à média do período anterior às câmeras. “Isso significa que 104 mortes foram evitadas nos primeiros 14 meses de introdução das câmeras, considerando apenas a região metropolitana da capital”, afirma o estudo.

O resultado para as lesões corporais provocadas em ações da polícia teve uma queda de 63% no total de casos. E isso não aconteceu porque a polícia deixou de agir. É o que sugere a pesquisa, pois os dados da criminalidade e da produtividade das Polícias Civil e Militar mostram que os números de prisões em flagrante em geral e de casos de tráfico de drogas permaneceram sem alteração relevante, ao contrário do que alegavam os bolsonaristas. De acordo com os autores do estudo, os resultados “não sugerem que a redução do uso da força possa ser explicada por redução do esforço policial”.

Razões

Se não foi a Polícia Militar que parou de trabalhar, nem os totais de crimes graves, como o feminicídio ou estupro aumentaram e inexistem evidências de que o comportamento dos suspeitos com a polícia tenha melhorado com as câmeras, por que, então, caíram os casos de uso de força pela PM? Essa pergunta foi feita pelos pesquisadores da FGV.

Várias hipóteses foram testadas, e a resposta dos pesquisadores foi de que “a existência de mecanismos de supervisão e o aprimoramento de protocolos, pode estar por trás da redução expressiva do uso da força”. Segundo contam os professores, “as imagens produzidas pelas câmeras nos uniformes podem ser analisadas pela cadeia de comando do policial, de modo que ele pode ser responsabilizado pelo não cumprimento dos protocolos”.

As câmeras da PM não precisam ser acionadas manualmente e gravam todo o turno policial. “O uso das câmeras induziu os policiais a reportarem melhor o que ocorre durante as ocorrências”, concluiu o estudo. Já no Rio, onde a PM testou um modelo em que a câmera precisa ser ligada pelo policial, menos de 10% dos agentes acionaram o equipamento em um mês de patrulhamento.

Além de reduzir o uso excessivo da força, a iniciativa paulista quis aperfeiçoar as provas coletadas em ocorrências e possibilitar o uso das imagens em treinamentos de técnicas policiais, além de aumentar a transparência e a legitimidade da PM. Em 2020, 585 câmeras foram distribuídas para 3 batalhões. Em 2021, a PM adquiriu 2,5 mil câmeras para 18 batalhões. Hoje, 66 batalhões usam as câmeras.

Ao todo, foram oito anos de pesquisas e de troca de experiências com polícias de Nova York, Los Angeles, Londres, Berlim e Bogotá. Pesquisa DataFolha mostrou que o apoio da população às câmeras é de 90%.

Durante a campanha eleitoral, a declaração de Derrite de que o programa existe para vigiar os policiais causou mal-estar no comando da PM. Ex-secretário Nacional de Segurança, o coronel José Vicente da Silva afirmou que só os maus policiais são contra o programa.

Para ele, as câmeras fazem parte do “amadurecimento da estratégia policial da prevenção, que se opõe ao conceito retrógrado da estratégia do confronto e da repressão como prioridade política”. Esta, segundo ele, além de “privilegiar as forças especiais e operações sistemáticas, se opõe ao fortalecimento da polícia territorial, que opera com mais eficiência fatores e condições da maioria dos crimes e desordens”.