No mês em que a alegria toma conta das ruas por causa do carnaval, a Agência Brasil publica a série de entrevistas Patrimônios do Carnaval, com personalidades que expressam a história, a cultura e o espírito da festa que mobiliza comunidades de Norte a Sul do país. Neste domingo (11), a entrevista é com o carioca Rubem Confete.

Na cultura africana, griô (ou griot) é aquele que mantém viva a memória do grupo, que conta as histórias e mitos daquele povo. É exatamente esse o papel que o radialista Rubem Confete tem em relação à comunidade do samba e ao carnaval carioca.

Rubem Confete também é um estudioso das questões afrobrasileiras  – Tânia Rêgo/Agência Brasil

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Não à toa, recebeu a alcunha de Griô do Samba. Aos 86 anos, conviveu com pessoas como Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Jamelão, Xangô da Mangueira e Candeia, de quem ouviu vários relatos. Mas também viveu suas próprias histórias, que se confundem com a história do Rio de Janeiro e da mais famosa festa cultural do país.

Sua memória não deixa lembrar exatamente quando o samba entrou em sua vida, mas parece que o ritmo esteve com ele desde o nascimento, na rua Dona Clara, em Madureira, na zona norte da cidade do Rio, em 7 de dezembro de 1936.

Confete viu nascer a tradicional Império Serrano; brincou no carnaval de rua de Madureira entre as décadas de 1940 e 1950; e participou de desfiles na Rio Branco, na década de 1960, quando as escolas de samba só contavam com um carro alegórico e não reuniam nem 500 pessoas na avenida.

Ele também vivenciou a transformação do carnaval carioca de uma singela festa popular no “Maior Show da Terra” – expressão que ele tira do refrão do consagrado samba É hoje (Didi e Mestrinho) – a participar de coberturas por veículos como a Rádio Continental, a Rádio Nacional e a TV Globo.

Como compositor, nunca teve a satisfação de assinar um samba-enredo em um desfile de carnaval carioca, mas criou algumas canções de relativo sucesso, como Pagode do Exorcista, que foi primeiro gravado pelo parceiro Nei Lopes, em 1974, e regravado no mesmo ano por Wilson Simonal em seu disco Dimensão 75.

No ano seguinte, foi a vez de Xangô é de Baê, uma parceria com João Donato e Sidney da Conceição, gravado inicialmente por João Donato e depois regravado por Caetano Veloso e também por Joyce Moreno.

Rubem Confete no Armazém do Senado, na Lapa, centro da cidade. – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Confete é também uma referência na cultura afro-brasileira, tendo participado da criação da escola de samba Quilombo, com Candeia, e do Centro Cultural Pequena África, que funciona na zona portuária carioca.

A reportagem da Agência Brasil conversou com o Griô do Samba. Confira a entrevista:

Agência Brasil: Como você foi parar no samba?
Rubem Confete: Na rua onde eu nasci tinha um bloco chamado Unidos de Dona Clara. Aliás, nesse bloco também saía a nossa querida Vilma Nascimento, o Cisne da Passarela, porta-bandeira. E eu via a participação da minha prima Juraci, lá no comecinho do Império Serrano. Eu tinha 11, 12 anos. Via meu primo Aniceto de Menezes, o Aniceto do Império [fundador da escola de samba]. E eu, criança, adolescente, gostava muito de carnaval. Pegava um terno velho do papai e ia lá pro centro de Madureira, onde é hoje a avenida Edgard Romero, para um carnaval de rua, com blocos.

A primeira vez que eu fui a uma escola de samba, foi na Paz e Amor, em Bento Ribeiro. Eu devia ter uns 15 anos. Era uma sala. O seu Galdino, mestre-sala, dançando, os compositores cantando. Depois eu fui no Independente da Serra, fundada pelo sogro da dona Ivone Lara [Alfredo Costa]. Aí eu fui já na condição de poeta. Eu fazia lá umas letras e o Ernani Monteiro musicava. Eu conheci a dona Ivone naquela época, em 1954, 1955. Mas a escola não prosperou. Chegava um cara, dava dois tiros pro alto e acabava o samba. Depois eu descobri que aquela escola não podia vingar, porque quando foi fundado o Império Serrano, em 1947, foi acordado que a escola de samba que melhor se colocasse seria a escola de samba do local. Mas era um negócio muito pequeno. Escola de samba saía com 30, 40 pessoas. Quando saía com 100 pessoas, era um absurdo. Éramos um tanto quanto marginalizados. Para você oficializar uma escola de samba, você tinha que ir a uma delegacia local. Era assim que funcionava.

O Griô do samba foi o homenageado da escola Golfinhos do Rio de Janeiro, em 2018, no desfile das Escolas de Samba Mirins na Sapucaí – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agência Brasil: Mas mesmo sendo de Madureira, reduto do Império Serrano e da Portela, você acabou indo parar na Mangueira. Como isso aconteceu?
Rubem Confete: Eu tinha um pouco receio de escola de samba, porque era um pessoal todo elegante. Eu não tinha esse poder aquisitivo, então eu ficava meio arredio. Eu era muito de frequentar bailes. E tinha um baile nas quartas-feiras no Clube Carioca, que era no Estácio. Eu estava lá dançando e chegou por lá o diretor de harmonia Xangô da Mangueira, junto com o Galego e o Zambeta. Eles me convidaram pra sair na Mangueira. A Mangueira ensaiava na Cerâmica, numa quadra do lado de uma fábrica de cerâmica, na rua Visconde de Niterói. O Ibrahim Sued, cronista social famoso, resolveu levar umas socialites para lá, inclusive a [então] primeira-dama Maria Teresa Goulart. Não tinha banheiros, então alugaram dois barracos, deram um jeito, criaram um mictório pra homens e também um sanitário pra mulheres. Era precário mesmo. Daí eu desfilei na Mangueira. Foi o último desfile das escolas no sentido da Presidente Wilson, entrava na Rio Branco, na Cinelândia e dispersava na Almirante Barroso. Isso foi em 62. Eu dei lá um passo, fiz uma firula. Fui até fotografado pelo Walter Firmo.

As escolas de samba eram pequenas. Tinha só um carro alegórico, que representava o enredo da escola. Era uma luta pra chegar no local do desfile. Saíam empurrando aquilo desde a Mangueira. Acho que, se tivessem 300 a 400 pessoas, era muito. Mas tinha bateria, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira e algumas escolas já começavam a ter algumas alas. Um dia, seu Natalino José Nascimento, o Natal da Portela, chegou pra mim e falou: “pois é. Não sei como você foi parar naquela escola”.

Agência Brasil: Nesses primeiros desfiles, você saiu como passista. Mas você chegou a ter algum samba seu na avenida?
Rubem Confete: Eu tive um bom samba no Império da Tijuca, com o Délcio Carvalho, mas eu não entendia de política, então fomos cortados.

Agência Brasil: Mas já tinha disputa de samba-enredo naquela época?
Rubem Confete: Eles tinham as disputas deles lá. Tinha escola que não tinha disputa, já chegavam com o samba pronto. Na Mangueira, os compositores ouviam os sambas um do outro e escolhiam um deles. Quem decidia eram os próprios compositores. Era algo muito democrático.

Confete vivenciou a transformação do carnaval carioca de uma festa popular ao maior show da terra Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agência Brasil: Você teve algumas composições que foram bem-sucedidas. Como foi sua experiência como compositor?
Rubem Confete: Eu fiz algumas composições, mas nunca me interessei muito, por causa de sociedade arrecadadora, de editores. Pro sambista, era muito difícil. O Silas de Oliveira, do Império Serrano, autor de Aquarela Brasileira e outros sucessos, saiu pelas ruas da cidade, percorrendo editoras, gravadoras, para buscar 500 cruzeiros pra comprar os cadernos de escola dos filhos. Todos disseram não. Quando o Silas faleceu, uma editora musical mandou uma coroa de flores bonita, no valor de 700 cruzeiros. Então, era muito difícil.

Assisti a muita humilhação de compositores. Isso me afastou muito desse negócio de compor. Eu tinha muito receio das gravadoras. Eu tinha uma coluna de música popular no [jornal] A Tribuna da Imprensa. Eu vivia dentro de gravadoras. Eu ouvia o que eles falavam de sambistas. Era um preconceito tremendo. Pensei: “não vou ficar nisso, não”.

Agência Brasil: Como foi que o senhor chegou ao João Donato e compôs Xangô é de Baê?
Rubem Confete: O Adelzon [Alves] ia produzir um disco com letras minhas e música do João Donato. Mas o Adelzon abandonou o disco. Então só ficou aquela mostra [uma música]. Mas as 12 letras [do disco do João Donato] seriam minhas e eu estaria em outro patamar agora [risos].

Agência Brasil: Teve também o Pagode do Exorcista, que foi regravada pelo Wilson Simonal…
Rubem Confete: O Pagode do Exorcista foi uma brincadeira minha com o Nei Lopes do tempo do filme do Exorcista. Eu até ganhei uma graninha. Eu tava com um sapato furado e deu pra comprar um tênis [risos]. Você ganhava um advance [dinheiro oferecido na hora do contrato] e depois não via mais nada. Tem execução, vendagem de disco, mas você não participava de nada.

A Xangô é de Baê [gravada por Caetano Veloso] a Joyce também gravou lá pro Japão. De vez em quando pinga um dinheirinho. Rende pouco, mas ainda rende. O compositor tinha que viver de produção. Tinha que produzir muito.

Agência Brasil: O que o carnaval representa hoje pra você?
Rubem Confete: O carnaval hoje pra mim é apenas uma grande saudade, um encontro com os amigos. Aliás, a maioria se foi. Quase que todos [os amigos] se foram. [No último carnaval, de 2022], o Império da Tijuca, que desfilou no grupo de Ouro [o grupo de acesso] prestou uma homenagem ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Quilombo, do Candeia. O Candeia me colocou como presidente da ala dos compositores e eu era mestre-sala. Então eu desfilei no Império da Tijuca por causa dessa homenagem. E desfilei no Salgueiro, lá no último carro, lá em cima, em um carnaval que falava sobre “resistência”.

Agora só desfilo quando sou convidado. Este ano, não fui convidado, mas no carnaval de 2024, vou estar na Intendente Magalhães. Porque sou presidente de honra de uma escola que está surgindo, América Samba e Paixão. Eu vou ser o presidente de honra e o [tema do] enredo.