06/03/2023 - 7:00
Shows exclusivos com artistas renomados, jantar em cassino, baladas, coquetel com tudo pago em hotéis cinco estrelas, aluguel de lanchas com direito a espumante de brinde. Estas são algumas das atrações no roteiro de eventos no Brasil e na Europa oferecidos à magistratura e custeados por alguns dos maiores litigantes do País. Os patrocinadores de seminários e fóruns com representantes da Justiça têm interesses em causas que somam ao menos R$ 158,4 bilhões entre multas, indenizações e dívidas reclamadas. Esse valor se refere a algumas das mais importantes disputas judiciais até 2022 no Brasil sob julgamento dos magistrados presentes nos eventos.
São 30 grandes processos levantados pelo Estadão no último ano, que têm patrocinadores como partes nos autos ou declaradamente interessados nos julgamentos. Entre as justificativas de Cortes e entidades que representam a toga estão “atividade acadêmica” e seleção rigorosa dos participantes (mais informações nesta página). Professores de Direito, porém, veem conflitos éticos, e até possibilidade de infração disciplinar. Também afirmam que magistrados não devem aceitar “luxos” de agentes privados.
Maior encontro do gênero no País, o Congresso da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) levou 27 juízes, desembargadores e ministros de tribunais para Salvador (BA), em maio de 2022, como palestrantes. Painelistas ficaram em um hotel cinco estrelas. Houve show para duas mil pessoas. A operadora de turismo do congresso ofereceu um cupom de 20% de desconto para o aluguel de lanchas.
O encontro foi patrocinado pela Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (Anab). A entidade teve direito a painel no evento, e usou o espaço para defender o rol taxativo da Agência Nacional de Saúde (ANS), cuja imposição estava em julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Apesar de não ser parte direta nos autos, a Anab defende empresas com interesse no julgamento. Coordenador do congresso e relator desta causa, o ministro do STJ Luis Felipe Salomão esteve no evento.
A Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Nacional dos Registradores e o Banco do Brasil também patrocinaram o congresso da AMB. A instituição financeira deu R$ 1,5 milhão para a realização do evento.
Do STJ, Marco Buzzi, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Moura Ribeiro, Ricardo Cueva e João Otávio de Noronha estiveram em eventos no Brasil e no exterior. Com estes ministros, o Estadão identificou pelo menos 20 causas de patrocinadores dos encontros. Somadas, passam de R$ 11 bilhões em discussão nos autos dos processos. Os ministros do STJ foram procurados, mas não se manifestaram.
Seleção
A AMB afirmou que faz “rigorosa seleção dos patrocinadores, descartando qualquer eventual tentativa de interferência na jurisdição”. “Os patrocínios são destinados, genericamente, ao evento e não individualmente a magistrados, inexistindo conflito”, afirmou. A entidade diz que associados que foram ao evento arcaram com passagens e hotéis. A associação não respondeu, porém, se o mesmo ocorreu em relação aos painelistas.
Diferentemente da AMB, alguns dos eventos em que estiveram estes ministros são promovidos por entidades privadas dirigidas por empresários e advogados que têm litígios com os juízes presentes. Ao menos três institutos com este perfil estão relacionados a recuperações judiciais e falências.
O Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud), fundado por dirigentes de um fundo de investimentos em ativos de insolvências, levou ministros do STJ, do STF e juízes de recuperação judicial para o Algarve, em Portugal, em maio do ano passado. O congresso terminou em show em cassino. Em abril, o Instituto Brasileiro de Direito da Empresa (IBDE) promoveu seu encontro na cidade do Porto, em um resort spa.
Em São Paulo, o Turnaround Management Association (TMA), chefiado por um diretor de uma mineradora em recuperação judicial, fez seu evento em um hotel, em novembro. Aos patrocinadores era sugerido um valor de até R$ 67 mil. Juízes e desembargadores debateram em painéis que levaram nomes de escritórios. Patrocinadores tiveram direito a chamar convidados para jantar com cardápio completo no hotel, show de jazz e coquetel. Na descrição do evento, a entidade vende o “bom e velho networking”. E aponta cinco motivos para patrocinar – entre eles, está a “oportunidade de geração de negócios”.
Administradores
No caso de insolvências, juízes são responsáveis por escolher os administradores judiciais e síndicos das empresas pivôs dos processos. Estes agentes ganham honorários.
O Estadão identificou ao menos três administradores judiciais nomeados em processos pelos juízes Andréa Palma, João de Oliveira e Leonardo Fernandes que patrocinaram eventos nos quais estes magistrados estiveram presentes. Há casos cujas dívidas somadas chegam a R$ 2,58 bilhões. Os três foram procurados, mas não quiseram se manifestar.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) patrocinou eventos com magistrados no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos, organizados por grupos empresariais como o Lide e o Esfera Brasil. Estiveram presentes os ministros do STF Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Barroso sempre se julga impedido em casos de bancos por ter sido advogado de instituições financeiras.
A Febraban é parte em um julgamento no STF sobre a cobrança de PIS e Cofins que pode provocar um rombo de R$ 115 bilhões à União em caso de vitória das instituições financeiras. O valor está estimado no Orçamento de 2023.
‘Luxo’
O professor de Direito da USP Rafael Mafei afirmou que é preciso atenção para a diferença entre custear uma palestra e “a oferta de uma viagem de luxo”. Ele vê com preocupação o “acesso desigual ao magistrado quando quem promove o evento, diretamente ou por meio de associações que despistam o vínculo, é parte interessada em casos julgados pelo magistrado”.
Conrado Hubner, também da USP, disse que as condutas podem se enquadrar “na categoria geral de quebra da imparcialidade, de manutenção da devida distância das partes, de respeito à suspeição”. Ele afirmou que deveria haver “implicação legal e disciplinar” para condutas incorretas. Também critica o fato de regras éticas não pegarem “tração no Judiciário”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.