24/05/2023 - 17:11
O Superior Tribunal Militar mudou entendimento de primeiro grau e condenou um coronel da Aeronáutica a um ano de reclusão por injúria racial contra um soldado. O coronel usou a expressão ‘um crioulo fazendo economia’, ao saber que o soldado estava fazendo curso de Economia. Na primeira instância da Justiça Militar da União, por quatro votos a um, o oficial havia sido absolvido.
Segundo a ação no STM, que corre sob sigilo, a ofensa ocorreu no dia 20 de junho de 2021, nas dependências do Parque de Material Aeronáutico de São Paulo (PAMASP), ‘quando o coronel injuriou a vítima utilizando elementos referentes à raça e cor’.
Naquele dia, o oficial entrou na ‘sala da chefia’ para falar com outro coronel e dirigiu-se ao colega utilizando palavras em inglês. Na sala também estavam dois soldados que despachavam assuntos de rotina com a chefia.
Ao entrar na sala, o acusado ouviu a ‘chefia’ responder a um questionamento de um dos soldados sobre procedimento para obter visto para os Estados Unidos. Ele teria se envolvido na conversa, comentando que havia morado e estudado nos EUA.
O soldado revelou que tinha intenção de fazer intercâmbio naquele país, quando terminasse seu tempo de serviço na Força Aérea, e concluísse seu curso universitário.
O coronel perguntou o que ele cursava na faculdade. O soldado informou que estava no último ano do curso de Economia. Imediatamente, o réu disse: “Um crioulo fazendo Economia!”.
De acordo com o processo, o acusado ainda procurou contornar a situação, fazendo considerações a respeito da origem da palavra ‘crioulo’. Os soldados pediram permissão para sair da sala e foram almoçar
Dias depois, a vítima comunicou formalmente os fatos à sua chefia, relatando que a situação descrita havia sido ‘desconfortável, humilhante, constrangedora’.
O soldado destacou que a expressão ‘crioulo’ foi dita em tom de ‘ironia e deboche’,
Ele assinalou que a palavra ‘é costumeiramente utilizada para rebaixar a imagem dos negros escravizados vindos da África, é um termo extremamente pejorativo e discriminador até nos dias atuais’.
Também afirmou que desejava que fossem tomadas providências para apuração da prática de crime de injúria racial, ‘até para que não se repetissem episódios de preconceito semelhantes àquele de que foi vítima’.
O comando do quartel abriu um Inquérito Policial Militar (IPM). Após conclusão da investigação, o Ministério Público Militar denunciou o coronel da Aeronáutica à Justiça Militar da União pelo crime do Código Penal comum, previsto no artigo 140, na forma qualificada – Injuriar alguém utilizando elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência’.
Em sua defesa, o coronel afirmou que houve ‘erro de interpretação’ por parte da vítima.
Ele afirmou que em nenhum momento teria dito que o soldado era um ‘crioulo’. E que não faria sentido o soldado ter ficado ofendido com a situação e, ao mesmo tempo, continuar conversando com ele por mais dez minutos normalmente. Por isso, segundo ele, ‘achou tudo aquilo estranho’.
O oficial disse também que, em momento algum, a vítima demonstrou estar constrangida, ‘pois respondia e conversava normalmente’ com ele.
No julgamento de primeiro grau, no Conselho Especial de Justiça, formado por quatro militares de patente superior à do réu e mais a juíza federal titular da 2ª Auditoria Militar de São Paulo, por quatro votos a um, o coronel foi considerado inocente e absolvido das acusações.
Na fundamentação da sentença, o Conselho de juízes arguiu que o chamado animus injuriandi deve estar presente no dolo direto ou eventual do acusado quando incorrer no crime de injúria.
“Não basta o agente atuar com animus jocandi, narrandi, consulendi, defendendi, corrigendi ou vel disciplinandi. É imprescindível a existência do dolo de injuriar, isto é, sua vontade livre e consciente de proferir ofensas à vítima em questão”, anotou o Conselho Especial de Justiça.
Para os juízes, ‘diante da análise das provas concernentes aos autos, não foi comprovado dolo direto ou eventual para o delito de injúria racial’. A juíza federal que integra o Conselho ficou vencida. Ela fez declaração de voto vencido.
O Ministério Público Militar discordou da absolvição e recorreu ao Superior Tribunal Militar para tentar reverter a decisão.
Ao apreciar o recurso de apelação, o ministro José Barroso Filho decretou segredo de justiça e, após a leitura do relatório, votou para derrubar a decisão de primeiro grau e condenar o coronel à pena de um ano de reclusão, como incurso no art. 140, § 3º, do Código Penal.
Em sua fundamentação, o ministro observou. “O Brasil intitula-se como sendo um país formado de várias raças, etnias e religiões, onde não haveria, em tese, conforme existe em outros lugares, discriminação. Entretanto, é sabido que há uma forma de discriminação velada, trazida por ofensas e comentários desairosos a pessoas e instituições, que demonstram a face segregática de muitos.”
O ministro determinou também que a pena aplicada deve ser cumprida inicialmente em regime aberto, com a aplicação de dez dias-multa, sendo o valor do dia-multa de 1/10 do salário mínimo vigente à época do fato, com o direito a recorrer em liberdade e com o benefício do ‘sursis’ pelo prazo de dois anos.
Por maioria, os outros ministros do STM acataram o voto do relator.