A União Europeia (UE) e o Reino Unido baniram em outubro as importações do Brasil de carne bovina de fêmeas. A razão alegada é o hormônio estradiol, proibido no bloco desde os anos 1990 na produção animal. Por outro lado, o setor nacional alega que a forma como a substância é utilizada no país não representa riscos, e que se trata meramente de um argumento protecionista europeu.

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O hormônio foi aplicado como um anabolizante para estimular crescimento bovino por décadas, até que, nos anos 1980, países europeus passaram a restringir seu uso. Uma diretiva europeia sobre o tema considera que o estradiol não é essencial para a produção de animais destinados à alimentação humana, e que existem alternativas.

Em outubro de 2003, a UE aprovou uma legislação que proíbe permanentemente a utilização de estradiol para fins de promoção do crescimento. A ação se baseou em um parecer que examinou os resultados de 17 estudos, encomendados pela Comissão Científica de Assuntos Veterinários Relacionados com a Saúde Pública (SCVPH, na sigla em inglês).

A conclusão foi de que existiria um conjunto substancial de provas que sugerem que o estradiol deve ser considerado um agente cancerígeno completo – que exerce efeitos tanto de iniciação como de promoção de tumores – e que os dados disponíveis não permitiriam uma estimativa quantitativa do risco para assumir um limite tolerável.

Pelas restrições, o tema foi alvo de disputas duras entre os europeus e os Estados Unidos, com a Organização Mundial do Comércio (OMC) sendo acionada para mediar a questão. Durante todo o processo, o argumento americano foi o de que não existiam evidências suficientes dos malefícios do estradiol, e que, o fato de se tratar de uma substância natural, presente inclusive no corpo humano, provava a segurança do uso.

Críticas ao Brasil

Recentemente, na França, o deputado Vincent Trébuchet chegou a comparar a carne brasileira a lixo, enquanto repudiava o acordo entre UE e Mercosul no Parlamento. “A realidade é que os nossos agricultores não querem morrer e que os nossos pratos não são lixos. Por não conseguirmos preservar nossa soberania nos últimos 25 anos, os governos franceses se mostraram distantes, tímidos, receosos em relação a esse acordo”, expressou.

Nas últimas semanas, grupos do país também contrários ao acordo, como o FoodWatch, apontaram justamente o estradiol como uma razão para não firmar o tratado. As publicações vieram no mesmo contexto do anúncio do Carrefour de que não venderia mais carnes produzidas no Mercosul em seus estabelecimentos franceses.

A publicação da ONG Carne bovina hormonal do Brasil: comemos sem saber? alega que não é possível saber quanto do volume de carne importado foi submetido ao tratamento e entrou de forma “fraudulenta” no mercado francês. Além dos riscos à saúde, o setor alega uma competição injusta, já que a pecuária francesa é obrigada a provar que não utilizou dos hormônios na produção, o que representaria mais custos.

Por outro lado, a posição majoritária no Brasil é a de que a carne não representa riscos, e que o estradiol é usado apenas no tratamento de fertilidade, o que não deixaria vestígios perigosos. Segundo especialistas e agentes do setor, o hormônio é expelido pelos animais muito antes do abate, e a quantidade que chega ao consumidor final não oferece danos. O estradiol é um problema quando usado para induzir o crescimento, o que não está permitido no país.

Uso importante na inseminação

No Brasil, a Instrução Normativa n° 55 de 2011, do Ministério da Agricultura e Pecuária, determina que: é proibido o uso, a importação, produção e comercialização de hormônios de crescimento. Por outro lado, é permitido o uso de hormônios para fins terapêuticos, ou seja, para o tratamento de doenças, e para a reprodução ou inseminação.

Hoje, a grande relevância no país está na chamada Inseminação Artificial em Tempo Fixo (IATF). O estradiol funciona como um indutor sobre o folículo ovulatório, o que permite ampliar as taxas de gestação das vacas.

Segundo Pedro Veiga, zootecnista e gerente global de tecnologia de bovinos de corte da Nutron/Cargill, atualmente, a inseminação artificial é aplicada em mais de 20% do gado preparado para corte no Brasil, sendo o estradiol parte de um protocolo comum. “No Brasil, especificamente, o estradiol é muito importante pela predominância das vacas zebu. Neste caso, há uma função crítica dada à realidade do rebanho.”

Carne bovina. Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O efeito reprodutivo do estradiol neste tipo de animais é mais destacado que em outras variedades, como os taurinos. Segundo uma série de estudos, a fertilidade das vacas pode cair até 20% no caso de ausência do hormônio na reprodução quando comparado com protocolos com sua presença.

Sobre os problemas à saúde do uso para a inseminação, Veiga afirma que “não há risco nenhum. A própria vaca que está em um ciclo normal produz um nível de estradiol. Os níveis usados são mínimos”.

Giancarlo Magalhães, diretor da Reproducio, consultoria em reprodução bovina, concorda, e explica que o tempo de uso no ciclo garante níveis não perigosos da sustância. “Não aplicamos um determinado fármaco para o animal ser abatido amanhã. Dá tempo de esse resíduo ser excretado, o que não possui um efeito acumulativo.”

No artigo “Proibição de hormônios na reprodução animal: o que esperar e o que fazer?”, os autores Gabriel Amilcar Bó e Alejo Menchaca afirmam que “não existem argumentos sólidos que comprovem que o estradiol utilizado nas doses indicadas para os protocolos de IATF e de transferência de embriões afetam a segurança alimentar”. Por sua vez, lembram que não existe nenhum método disponível para identificar se uma vaca recebeu uma dose de estradiol para IATF, o que impulsiona restrições.

Proibição em outros países e efeitos no Brasil

O banimento do uso do estradiol vem avançando em outras partes do mundo, levando bastante em conta o mercado europeu. O Uruguai baniu o hormônio em 2021, enquanto Argentina, Chile e Paraguai criaram limitações próprias. No caso argentino, desde 2022, é obrigatório que os rótulos do produto contenham a informação de que eles não devem ser usados em elementos que tenham a UE como destino.

Entre outros países que restringem o hormônio em diversas formas, estão Estados Unidos, Canadá e Nova Zelândia.

Neste ano, um relatório da Comissão Europeia concluiu que não era possível garantir que o hormônio não era utilizado nos produtos enviados ao bloco devido à ausência de um sistema de rastreabilidade. O resultado foi a decisão de passar a comprar apenas carne de bovinos machos até que o Brasil pudesse oferecer tais garantias.

O Brasil recebeu um prazo de 12 meses para se adaptar às exigências do bloco. Segundo Veiga, o principal é a segregação dos animais, além da garantia de que as fêmeas enviadas à UE não foram tratadas com o hormônio. “Querem que seja provado que não houve aplicação para enviar o produto à Europa”, afirma.

Por sua vez, ele é cético sobre mudanças, diante de um mercado que hoje já não é tão relevante para os produtores brasileiros. “É necessário ter um controle muito complexo, as fazendas têm outras prioridades. Seria muito trabalho a se adotar”, avalia. De acordo com Veiga, menos de 2% da carne exportada pelo país tem o continente como destino.

Além disso, na prática, como são países que importam muito mais gado macho que fêmeas, Magalhães não crê que haja grande efeito das exigências europeias. “Se pegarmos o total de envios que tiveram o uso do hormônio, é irrisório. A suspensão não mudou muita coisa”, afirma.

Sobre alternativas, ele lembra que muitas já vêm sendo aplicadas nos países que banem o uso do hormônio. Por sua vez, “para nós, o custo destes produtos é muito elevado”, afirma. Um método usado na Europa e nos Estados Unidos é o chamado o hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH).

Estudos, no entanto, apresentaram menos eficácia desse método no gado brasileiro do que em outros países. Além disso, a aplicação do protocolo com GnRH pode representar um grande manejo extra durante a produção.

Na opinião de Magalhães, os custos e a competitividade seriam a grande razão por trás das críticas à carne brasileira, uma das mais baratas do mundo. Em sua visão, o que puder ser feito para barrar o produto na Europa será de interesse dos produtores locais. Para Magalhães, nem mesmo um sucesso da campanha para bloquear o tratado de livre comércio cessará a disputa. “Não acredito que se o acordo com o Mercosul for barrado, os ataques irão parar”, conclui.