03/08/2020 - 22:05
“Estou cheio”, “Preciso me esvaziar”, “Só você aguenta minha energia espiritual”. Era com frases como esta, e se referindo às interlocutoras como “menininha”, que o líder religioso e ex-grão mestre da Grande Loja Maçônica da Bahia, Jair Tércio Cunha Costa, de 63 anos, anunciava de forma velada os abusos sexuais que teria cometido com mulheres que o tinham como guru espiritual.
Sob ameaças travestidas de atos de bondade para “purificar” a alma das vítimas, Jair Tércio teria mantido sob seu domínio sexual e manipulação psicológica pelo menos 14 mulheres adultas, jovens e adolescentes durante anos. O caso foi denunciado no Fantástico, da TV Globo, no domingo, 2.
Quem conta os detalhes para o Estadão é uma das vítimas, Tatiana Badaró, de 33 anos, que denunciou o autoproclamado “guru” junto com outras 13 vítimas, todas de Salvador, na Ouvidoria do Conselho do Ministério Público e Projeto Justiceiras. Jair Tércio está sendo acusado por elas de ter cometido crimes de abuso sexual e psicológico. O procedimento investigativo foi aberto semana passada, no Ministério Público da Bahia, e corre sob sigilo, coordenado pela promotora Sara Gama.
Procurado pelo Estadão, o MP informou que ainda não pode adiantar detalhes do procedimento, e que está na fase de levantamento de provas e ouvindo as partes envolvidas. A promotora Sara Gama preferiu não se pronunciar neste momento.
Entre as supostas provas já coletadas, há gravação telefônica entre Tércio e uma menor registrada em um Boletim de Ocorrência, em Salvador, na qual a garota informa que sua mãe a levará ao ginecologista e que teria ‘perdido a virgindade’ com ele. Tércio, então, pede para que ela não vá. A defesa do guru espiritual nega as acusações.
Tatiana conta que após denunciar o caso em suas redes sociais, recebeu outros 200 relatos de mulheres que sofreram abusos de Jair Tércio, mas somente 14 quiserem se expor ao MP. O ato mais antigo teria ocorrido há 41 anos.
Os abusos, relatam Tatiana e outra vítima, que preferiu não ter sua identidade revelada, ocorriam em duas residências de Jair Tércio, em Salvador: uma no apart hotel Victoria Marina, no Corredor da Vitória, bairro nobre da Capital, e outros na casa do bairro de São Tomé de Paripe, em frente à praia de Inema. Outros, ainda, ocorriam no município de Piatã, na Chapada Diamantina, onde eram organizados retiros espirituais nas montanhas.
Lavagem cerebral
Tatiana tinha somente 15 anos quando foi levada pelo então namorado e ex-marido à Organização Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais, a Fundação Ocidemnte, onde foi apresentada a Jair Tércio, tido como líder espiritual do chamado Imutabilismo, um movimento religioso criado por ele.
Tércio dizia ter sido a reencarnação do profeta Moisés, do filósofo Baruch Spinoza, do artista renascentista Leonardo da Vinci e do líder espiritual hindu Mahavira. Os ensinamentos do “guru” estariam compilados no livro Arca Sagrada, supostamente escrito por ele.
Até chegar ao ato sexual, Jair Tércio construía uma relação de confiança com as mulheres, por meses ou anos, até informá-las que deveriam passar por um “tratamento” ou “purificação” a fim de que fossem perdoadas por algum suposto ato tido como promíscuo ou alcançar o que desejassem naquele momento. No caso de Tatiana, que engravidou do namorado aos 16 anos, para ser purificada de sua “conduta promíscua” nesta encarnação e reparar o Karma, era necessário ceder aos atos sexuais de Jair Tércio. Assim foi entre os anos de 2007 e 2015.
“Estava em um momento de imensa vulnerabilidade. Quando você procura um ambiente religioso, você vai de peito aberto. Ele se colocava como minha salvação…Eu duvidava de minha própria sanidade. Não sabia se eu estava louca”, disse. Ficava em dúvida sobre a correção de Jair Tércio, mas temia represálias do grupo maior. “Iriam dizer que eu estava mentindo”.
No primeiro ano, Tatiana foi abusada todas as quartas-feiras à noite, ela lembra. Passado este período, pelo menos uma vez ao mês. Até que, certa vez, ao ter acesso ao celular do líder espiritual, encontrou mensagens idênticas para muitas mulheres da Fundação. Percebeu que estava sendo abusada e rompeu. “É uma lavagem cerebral”, afirmou.
Outra vítima que não quer ter a identidade revelada neste momento, diz que sofreu abuso duas vezes, nos anos de 2006 e 2007. Também levada pelo namorado para a Fundação Ocidemnte, ouviu de Jair Tércio que precisava passar por uma purificação para que pudesse engravidar de seu hoje ex-marido, também adepto do movimento Imutablismo. “Ele [Jair Tércio] começou enviando mensagens por SMS dizendo que eu devia me masturbar”, lembrou. “Me chamava de menininha”.
Até que, cerca de um ano após, disse que havia chegada a hora do tratamento de purificação dos chacras para que ela viesse a engravidar do marido. No apart hotel, pediu que ela fosse ao banheiro, tirasse a roupa e deitasse na cama com um lençol cobrindo seu corpo. Após pairar sua mão no ar sobre ela, tocou em sua vagina. “Fiquei estática, não sabia o que fazer (…), depois ele me penetrou”.
O que diz a defesa
A reportagem teve acesso a três contatos de telefones móveis de Jair Tércio Cunha Costa, mas ele não atendeu às ligações. Procurado pelo Estadão, seu advogado de defesa, Fabiano Pimentel, enviou nota de esclarecimento na qual nega violência física e psicológica e diz que “que todas as relações que [Jair Tércio] teve, em toda a sua vida, foram consentidas e marcadas por carinho e afeto”.
“Apesar de sua trajetória no campo dos estudos da espiritualidade e de ser autor de diversas obras literárias, fatores que o alçaram a autoridade na matéria, o Sr. Jair Tércio nunca se valeu de sua posição para lograr vantagens espúrias, principalmente em âmbito sexual”, disse o texto. Até o momento, diz ainda, “o Sr. Jair Tércio não foi intimado a comparecer a nenhum interrogatório, mas já se colocou à disposição das autoridades para esclarecimentos, inclusive por acreditar que todos os fatos serão elucidados no curso do processo”.
A Grande Loja Maçônica do Estado da Bahia (GLEB) também soltou nota à imprensa informando que Jair Tércio, que ocupou a cadeira de Grão Mestre da entidade, responderá à sindicância interna, já instaurada, “tendo sido cautelarmente afastado das atividades regulares na maçonaria, com seus direitos maçônicos suspensos”. A entidade também afirma que práticas reprováveis e à margem da lei, realizadas por qualquer indivíduo precisam ser apuradas e, se comprovadas, devem ter sanções legais aplicadas.
A GLEB ressalta que todos os membros da maçonaria possuem o direito a um julgamento pelo Tribunal Maçônico, “respeitada a garantia da ampla defesa e do contraditório”. Por essa razão, a instituição não comentará nem emitirá juízo de valor do processo, que tramita em sigilo.
Já a Fundação Ocidemnte, com sede em Salvador, informa em nota de esclarecimento, em seu site, que foi idealizada pelo “educador” Jair Tércio Cunha Costa, o qual, desde 2017, “não exerce mais nenhuma função ou atividade na instituição, e nem em suas unidades parceiras”. Afirma, ainda, que “não é, e nunca foi, uma organização religiosa” e que o desenvolvimento humano é “através de processos de ensino-aprendizagem-sentimento, pesquisas e extensão que incluem meditação, consciência e autoconhecimento, sem qualquer tipo de conotação religiosa ou vínculo com instituições com este perfil”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.