30/09/2020 - 13:30
A decisão tomada pelo Conama, de derrubar as resoluções que protegiam manguezais, pode ampliar um problema que vem avançando: as florestas de mangue já tiveram até 50% de sua área total no Brasil desmatada pela criação de camarões em cativeiro, a carcinicultura. A atividade tem recebido atenção e apoio da gestão Jair Bolsonaro nos últimos meses, destaca o Estadão.
Em novembro, quando o litoral nordestino enfrentava o desastre ambiental advindo da chegada de óleo às praias, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ordenou que o objetivo 9 do Plano de Ação Nacional (PAN) para os manguezais fosse derrubado. O item previa especificamente as ações para erradicação de carcinicultura e a recuperação das áreas afetadas.
“Os mangues estão sob um tipo de proteção muito fraca, sem efeito prático”, explica o ecólogo Alexander Ferreira, pós-doutor em Ciências Marinhas Tropicais. Especializado na conservação e restauração desses biomas, ele explica que o Código Florestal de 2012 prejudicou os manguezais, abrindo a possibilidade para a ocupação de pelo menos 600 mil hectares nacionalmente, ainda que estejam em áreas de proteção ambiental (APAs).
A proteção dos manguezais frente à carcinicultura está emaranhada em uma rede jurídica entre os entes municipais, estaduais e federais. Em abril, o Ibama publicou uma nova Instrução Normativa (IN n? 9/2020), que passou a licenciar e isentar da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA) a “criação intensiva de animais”. “A Constituição diz que a fiscalização se dá pelos três entes federados. Já a Lei Complementar 140 distribuiu essas competências com a regra geral de que quem licencia é quem fiscaliza”, explica Marise Duarte, professora de Direito Público da UFRN.
Em 2013, um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que o Brasil tinha uma área total de 1.389.960 hectares de manguezais. Ao todo, o País concentra 9,8% desse bioma em todo o mundo e abriga a maior parte da América Latina (59,8%). No mesmo ano, entretanto, a carcinicultura já havia se expandido por 30.475 hectares e foi classificada pelo estudo como “uma das principais atividades econômicas encontradas nas zonas de ocorrência de manguezais do Brasil”.
De acordo com o Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), 99,9% de todas as fazendas de carcinicultura do País estão inseridas em alguma UC. O mesmo documento afirma que a criação de camarão é a responsável pela destruição global de 38% a 50% dos manguezais brasileiros.
“Desde a minha primeira viagem, e em todas que fiz pela costa brasileira, o que mais me espantou foi a degradação, o conflito social, as ameaças e o silêncio causados pela carcinicultura”, afirma o jornalista João Lara Mesquita. Em 2005, ele teve seu primeiro contato com a atividade e produziu um documentário sobre o tema. “A especulação imobiliária, a poluição e o descarte do lixo eram coisas sabidas. Mas quase ninguém fala sobre esse assunto e o que há por trás de uma degradação desse tamanho.”
Em 2008, a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva tentou suspender os atos de concessão das Unidades de Conservação (UCs) pelo governo federal, estabelecendo um prazo para a retirada das fazendas de carcinicultura dos manguezais, que então ganharam mais um instrumento de proteção legal. A medida, entretanto, foi revogada mais tarde pelo novo Código Florestal, que flexibilizou não só as diretrizes para a exploração de APAs, mas também concedeu um “perdão jurídico” a todas as fazendas de camarão que estavam localizadas em manguezais até 2008.
Para Marjorie Madruga, que atua na Procuradoria Ambiental do Rio Grande do Norte desde 2003, as mudanças no código atingiram especialmente os apicuns e salgados, que deixaram de ser reconhecidos como parte dos manguezais e ganharam permissão para serem ocupados pela criação de camarão.
A derrubada das resoluções do Conama, na visão dela, levaria a um clima de “insegurança jurídica muito grande”, “judicialização imensa” e limites para a exploração de APPs “em aberto”. “Cada Estado ou órgão poderia normatizar um tamanho próprio de exploração e dizer onde começa e termina a área de restinga, saindo da objetividade local e entrando na subjetividade política”, explica. Além de abrir caminho para a carcinicultura, isso também permitiria o aumento da especulação imobiliária no litoral, com a construção de resorts e a invasão de trechos que, previamente, estariam protegidos por lei.
A carcinicultura está associada ao desmatamento de manguezais desde que chegou ao Brasil, desembarcando no Rio Grande do Norte ao final da década de 1970 pelas mãos de José Cortez Pereira de Araújo. À época, o governador lançou o “Projeto Camarão” como uma substituição à extração do sal, em declínio na região, aproveitando a experiência de países da Ásia e a produção que despontava no Equador.
Uma série de fatores faz com que a atividade tenha encontrado no litoral nordestino um espaço para a sua franca expansão, mas os principais são as altas temperaturas da região e o “baixo custo de investimento” oferecido pelos manguezais. Enquanto a sua posição geográfica permite condições climáticas perfeitas para a carcinicultura e rende até três ciclos ao ano, os mangues oferecem um abastecimento natural de águas salgadas. Não à toa, quase toda a produção brasileira de camarão está no Nordeste (99,4%), segundo o IBGE. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.