03/10/2020 - 10:02
A batalha judicial que vem sendo apresentada após o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovar a extinção de regras de proteção ambiental pode se prolongar ainda mais. Um dia após o órgão revogar resoluções próprias, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu provisoriamente a decisão. Em seguida, nesta sexta-feira, 2, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região restabeleceu a validade das aprovações iniciais.
Essa discussão está relacionada à dinâmica de atuação do Conama, o órgão atua para regulamentar leis já editadas pelo poder legislativo. As normas, que são efetivadas pelo poder executivo, servem para dar diretrizes e detalhar como a lei deve ser tratada e aplicada.
São duas as principais resoluções em debate: a 302, que fala sobre preservação de áreas, numa faixa mínima de 30 metros, ao redor de reservatórios de água e proíbe a exploração desse espaço para qualquer uso econômico ou habitacional; e a 303, que dita instrumentos para proteger os manguezais e faixas de restinga do litoral brasileiro, passando a considerá-los áreas de preservação permanente. Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam o caso do ponto de vista jurídico e ambiental.
Yara Schaeffer Novelli, professora sênior do Instituto Oceanográfico da USP, considera prejudicial retirar as regras de proteção ambiental e que o Código Florestal de 2012 ainda mantém as restingas desprotegidas. Ela colaborou com a câmara técnica jurídica na elaboração das normas 302 e 303, criadas em 2002, e diz que em 2017 já houve uma tentativa de revogá-las. “Tentaram pela primeira vez porque elas delimitam e resguardam muito bem as áreas.”
Diante do pedido de revogação à época, a pesquisadora elaborou um parecer técnico para embasar a importância da norma relacionada aos manguezais e restinga, que seria levado para discussão junto com o parecer jurídico. “Na época, desistiram da revogação porque o próprio parecer do ministério (do Meio Ambiente) chegou à conclusão que era melhor tirar a proposta de revogação diante do parecer técnico de que era importante manter a norma”, lembra. Assim, o pedido nem chegou a ir a plenário.
Na discussão atual sobre revogação, Yara aponta para a ausência de parecer técnico que respalde a decisão de revogar as normas do Conama. “É um processo que foi gestado e, de repente, se marca uma reunião extraordinária em que se está julgando com um único parecer. Não teve câmara técnica dessa vez. O ministro (Ricardo) Salles levou apenas um parecer da consultoria jurídica, não técnica”, diz. Ela afirma que Ministério do Meio Ambiente “está ignorando a necessidade de parecer técnico, que faz parte do jogo para dar oportunidade para todos se manifestarem”.
A professora pondera que os manguezais até têm respaldo no Código Florestal, mas com “deformações graves porque isolaram uma das feições do ecossistema”. As restingas, porém, continuam desprotegidas, segundo ela. “Não reconheceram o que está na resolução 303, de necessidade dos limites. Se você tirar essa resolução do Conama, vai ficar totalmente desprotegida, a mercê das imobiliárias e construção de casas com pé na areia, vai desproteger a linha de costa diante do aumento do nível do mar, que vai subir, erodir as praias e chegar nas restingas”, explica.
“As restingas são uma proteção natural que temos, gratuita, e ao desrespeitar a necessidade delas e dos manguezais, estamos tirando a defesa natural da nossa linha de costa. Desrespeitá-las, desprotegê-las, descaracterizá-las, tirando a legislação que garante essa proteção, é tudo o que a ‘boiada’ quer”, completa Yara.
Insegurança jurídica
A advogada Rebeca Stefanini, da área de Direito Ambiental do Cescon Barrieu, explica que as resoluções que o Conama quer revogar foram editadas na vigência do Código Florestal de 1965, que determinava as regras, dizia o que precisava ser protegido, mas não apresentava pormenores, como a metragem de áreas e requisitos técnicos. “No âmbito dessa lei de 1965, o Conama foi lá e editou as normas 302 e 303, que vieram regulamentar metragem para as APPs (áreas de proteção permanente). Na época, e mesmo anteriormente, já tinha muita discussão da validade dessas resoluções porque inovava no ordenamento jurídico, tinha bastante discussão sobre não poder criar obrigações”, diz Rebeca.
Quando o novo Código Florestal entrou em vigor, em 2012, ele anulou o anterior, o que teoricamente fez com que as normas do Conama se tornassem inválidas. “Do ponto de vista jurídico, essas resoluções não tinham validade porque não guardavam relação com o (novo) código”, explica a advogada.
Apesar disso, as resoluções permaneceram até agora e continuam sendo usadas em tratativas ambientais. Mas o fato de elas existirem juntamente com o Código Florestal de 2012 causa insegurança jurídica, segundo Rebeca. “Cada tribunal do País aplica de um jeito. Tem tribunal que aplica regras do Conama porque não gosta do Código Florestal ou entende que ele tem proteção menor, e tem tribunal que aplica o código. Mesmo os órgãos ambientais, que aplicam o Código Florestal, mas com receio de sofrer represália do Ministério Público.”
“O STF já se posicionou sobre vários dispositivos do Código Florestal. Ainda assim, mesmo com emissão do Supremo, com decisão de que todos deveriam cumpri-lo, tem decisões descumprindo o que foi decidido lá. Não sou tão otimista, não sei se vai conseguir ter definição disso”, afirma a advogada. Para ela, são muitas resoluções conflitantes que resultam em pareceres diferentes. Dessa forma, Rebeca afirma que, no entendimento jurídico, se o Código Florestal for aplicado, a revogação das resoluções do Conama deve ser mantida. “Foi importante a revogação porque acaba com as discussões.”
No caso dos que argumentam que o Código Florestal é insuficiente por deixar áreas desprotegidas, a advogada explica que o recomendado é levar o caso ao legislativo. “O foro adequado não é Conama, não é judiciário. Quem é contra e tem conhecimento técnico para conseguir defender que a lei de 2012 é inadequada tem de juntar embasamento técnico e levar ao legislativo.”
Mobilização contra a revogação
Após as decisões anunciadas pelo Conama no começo da semana, parlamentares e a sociedade civil organizada manifestaram-se contra a revogação das normas. Parlamentares do Senado e da Câmara foram ao Supremo para pedir que seja declarada a inconstitucionalidade da nova resolução ou que ela seja suspensa a fim de que os temas sejam analisados.
Depois dessa mobilização, a ministra Rosa Weber, do STF, solicitou que o ministro Ricardo Salles preste informações em até 48 horas sobre a revogação das regras de proteção ambiental.