22/10/2020 - 20:06
Após a morte do neto Gabriel Ribeiro Marcondes, de 20 anos, baleado em uma operação policial no último sábado, o cantor Neguinho da Beija-Flor afirmou que pretende se mudar para Portugal, para criar a filha mais nova, negra e de 12 anos, em segurança. O sambista disse que nunca foi militante, mas destacou que “não pode tapar o sol com a peneira”.
Neguinho referia-se ao racismo que identifica nas ações policiais em comunidades pobres no Brasil. “Morreram mais dois lá, junto com meu neto. Tinha algum branco? É ruim, hein? Só tinha preto da comunidade”, afirmou o avô, hoje com 71 anos. “Se eu não tivesse dado sorte na música, se não fosse conhecido no mundo todo – no mundo todo, não só no Brasil -, eu não estaria mais aqui (vivo) há muito tempo. Na favela, a polícia atira primeiro e pede documento depois.”
As reclamações de Neguinho têm respaldo nas estatísticas. Segundo o Atlas da Violência 2020, editado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgado em agosto, os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) foram 75,7% das vítimas de homicídios em 2018 no País. Trata-se de uma taxa de 37,8 por 100 mil habitantes. Entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9. A maioria das vítimas é jovem (15 a 29 anos), como Gabriel.
O neto de Neguinho foi baleado no Morro da Bacia, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em operação policial para reprimir um baile funk. Gabriel trabalhava com montagem de tendas para eventos. Socorrido, foi levado ao Hospital da Posse, mas não resistiu.
“O garoto estava desarmado. Mas aí as pessoas falam: ‘Ah, mas ele estava no local errado, na hora errada’. E queriam que ele estivesse onde? No Morumbi? Em Copacabana? No BarraShopping? Aliás, se ele estivesse no shopping, o segurança estava andando atrás dele, com certeza”, disse Neguinho. Ele lembrou que o jovem vivia na comunidade, onde o sambista também já morou, no passado.
‘Só na favela’
Em 2019, 1.810 pessoas foram mortas por disparos de policiais no Rio de Janeiro. A maioria era de jovens negros, moradores de comunidades carentes. “Por que a polícia não chega em apartamento atirando, matando gente? Nos apartamentos onde tem milhões de dólares escondidos? Onde as pessoas colocam dinheiro na cueca? É só na favela”, reclamou Neguinho. Ele acompanhou o filho, pai de Gabriel, à delegacia e disse que pretende processar o Estado pela morte do rapaz.
O sambista disse que já tinha planos para se mudar para Portugal, onde outros parentes já estão morando. Com a morte trágica do neto, a vontade se intensificou. Ele avisa que tem uma filha, Luisa, “de pele escura, como a minha”, e pergunta: ‘Como é que eu vou viver aqui? Vou dar no pé”.
Ele lembrou que há “negros presos injustamente”, cujas famílias tiveram de se mobilizar para provar que eram inocentes, e outros que morreram na cadeia, “sem culpa de nada”. “Fiquei velho pra ver a PF prender branco de olho azul. Mas, mesmo assim, tem segunda instância, tem habeas corpus, tem tornozeleira, tem o cacete… Para preto favelado não tem nada disso”, desabafou.
Na última segunda-feira, a Polícia Civil abriu um inquérito para apurar as circunstâncias das mortes dos três jovens. De acordo com a PM, os policiais receberam uma denúncia de que um baile funk não autorizado estaria bloqueando uma via pública no Morro da Bacia. Eles contaram que tentaram abordar dois homens que estavam em uma motocicleta. Na perseguição, teriam recebido vários tiros de traficantes da comunidade e revidado.
O Estadão pediu à PM um posicionamento sobre as acusações feitas por Neguinho da Beija-Flor, mas até as 19h30 de ontem não havia resposta.