26/11/2020 - 11:11
Às 3h45, em plena madrugada, Margarete Santos, de 39 anos, segurava um arranjo de flores e assistia em silêncio a terra encobrir o caixão do marido Claudinei Carlos Barboza, de 30. Acompanhando a viúva havia apenas uma tia e quatro coveiros, que, mesmo aparentando cansaço, se esforçaram para acabar o trabalho o quanto antes. Entre o corpo chegar ao cemitério e o fim do sepultamento passaram exatamente 15 minutos.
Aquela era sexta vez em poucas horas que a cena se repetia no Cemitério Municipal de Itaí, no interior de São Paulo, cidade onde moravam 37 dos 41 mortos no acidente entre uma carreta e um ônibus com funcionários de uma fábrica têxtil.
Com muitos corpos a enterrar e orientação do Instituto Médico-Legal (IML) para evitar o mau cheiro, os velórios duravam cerca de duas horas e os sepultamentos, feitos a toque de caixa e na presença de poucas pessoas, vararam a noite. Todos os caixões estavam fechados. Em alguns, havia apenas uma pequena foto da vítima.
“Ele gostava muito de pescar e estava pronto para ajudar o outro. Fazia amizade muito fácil”, Margarete descreveu o marido, com quem vivia há cerca de sete anos. Foi por esse mesmo período que Barboza trabalhava na fábrica. “Vivia reclamando que o motorista do ônibus corria muito e a pista era perigosa, sempre via acidente.”
Reclamação semelhante teria feito Tiago Aparecido Aulfs, de 25 anos, funcionário da fábrica, treinador de um time de várzea e décima vitima sepultada em três horas. O caixão foi enterrado com a bandeira do Unidos do Capitão. “Ele ficava preocupado porque o motorista andava em alta velocidade”, diz o cunhado e goleiro da equipe, Wesley Souza. “É muito triste não poder nem ver o rosto dele.”
Sem iluminação adequada, o cemitério precisou receber caminhões de luz emprestados de concessionárias de rodovias para realizar os velórios em série. Ainda assim, familiares e parentes das vítimas tiveram de usar a lanterna de celulares para guiar os passos até as covas abertas. Durante os enterros, o silêncio era mais comum do que o choro.
“A gente queria velar por mais tempo, mas só tivemos duas horas. Achei injusto”, afirmou o administrador Ricardo Santos, primo de Ana Cláudia Santos, de 31 anos, a primeira vítima a chegar ao cemitério. Ao fim do enterro, houve uma salva de palmas discreta. “Ela trabalhava na fábrica havia 12 anos e estava juntando dinheiro para ter um negócio próprio. A família vai abrir o negócio e pôr o nome dela em homenagem.”
Antes da tragédia, os novos túmulos em Itaí variavam entre 12 e 15 por mês. Só na quinta-feira, 25, no entanto, foram escavadas mais do que o dobro: 37. Os velórios foram realizados em três locais diferentes, com controle de acesso e distância de seis metros entre os caixões por causa da pandemia da covid-19.
O esforço exigiu uma força-tarefa, com a transferência de funcionários de outros setores da prefeitura para atuar nos enterros, além da ajuda de voluntários e de cidades vizinhas, como Fartura e Taguaí, o local do acidente. Para os velórios, a cidade recebeu até suporte de caixão emprestado. As três funerárias do município, até então concorrentes, também juntaram as equipes para dar conta dos corpos.
“É o dia mais triste da história de Itaí”, disse o prefeito Thiago Michelin (Republicanos), que compareceu ao velório coletivo e se emocionou ao comentar o acidente. Por causa da tragédia, a prefeitura decretou luto de três dias e manteve aberto só os serviços essenciais. Lojas também cerraram as portas e colaram cartazes de pêsames.
Segundo Michelin, a maioria das vítimas tinha até 27 anos. “São jovens que acabaram de entrar no mercado de trabalho e estavam no primeiro emprego”, disse.
Um dos casos foi de Aline Fernanda de Oliveira, de 20 anos. “Como em Itaí não tem oportunidade, as pessoas precisam ir para a indústria de cidade da região”, relatou o irmão Djair Oliveira, de 21 anos. “A diversão dela era aquela fábrica. Ela estava crescendo aos poquinhos e ia começar a pagar as coisas dela.”
Já Lucielen Firmino, de 27 anos, trabalhava de costureira, mas antes havia sido secretária. “O sonho mesmo dela era ser modelo. Ela desfilava para loja de roupa, calçado, perfume”, lembrou a mãe Tereza Maria Firmino, de 50, que, em vez de chorar, sorriu e distribuiu abraços na maior parte velório. “Minha filha era muito extrovertida. Eu tenho certeza de que ela está feliz de me ver assim.”
A irreverência também era principal característica de Elisângela Aparecida Mingote, outra jovem funcionária da fábrica. “Ela era muito alegre, vivia todos os dias como se fosse o último”, disse o primo Paulo Mingote.
Voluntária da força-tarefa, a estudante Taila Ferreira, de 26 anos, era amiga de Elisângela. As duas saíram juntas há duas semanas. “Resolvi ajudar porque eu conheço todo mundo que morreu, seja de vista ou de internet”, disse. “Era a única coisa que poderia fazer.”
Hoje, Taila mora em Ribeirão Preto, mas já chegou a trabalhar na mesma fabrica de confecções quando era mais jovem. “Eu tinha medo do transporte. Só aguentei uma semana.”