21/05/2014 - 14:05
O texano John Cain Carter, filho de agricultores americanos, sempre foi um apaixonado pelo agronegócio e pelo meio ambiente. Aos 12 anos, ele fez sua primeira caminhada pelas Montanhas Rochosas mericanas, num percurso que durou quase dois meses. Depois de adulto, como piloto de um monomotor, suas peregrinações por lugares cada vez mais longe de casa se tornaram um hábito. Ele só não imaginava que o Brasil, um dia, seria o seu destino final. Em 1997, depois de formado em geologia e com pós-graduação em administração rural, pela Universidade do Texas, sua vida deu uma guinada. Em vez de voar de volta para casa e tocar as fazendas da família, nas quais havia gado e extração de petróleo, Carter se casou com uma brasileira, tomou o avião e desceu em uma fazenda na região de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, uma área inóspita e selvagem por muitos anos conhecida como Arco do Fogo. “Saímos de avião do Texas e pousamos na fazenda, numa época em que não havia estradas ou energia elétrica num raio de 200 quilômetros”, diz.
Foi como fazendeiro em Mato Grosso que Carter se tornou conhecido, por combater nessa região do País quem ameaçava colocar fogo na floresta. “Eu estava numa região de abertura de fronteira agrícola, onde o fogo era a lei”, diz. Para contar uma história diferente e preservar a mata nativa, Carter fundou em 2004 a Aliança da Terra, com sede em Goiânia, uma Organização da Sociedade Civil que atualmente conta com 712 propriedades rurais associadas. Essas fazendas ocupam hoje uma área de 3,5 milhões de hectares, dos quais 1,5 milhão é de florestas protegidas e 1,4 milhão, de áreas produtivas, nas quais há bovinos, grãos e madeira. Desde 2007, essas fazendas já investiram R$ 22 milhões em melhorias ambientais.
Por conta do trabalho de preservação, a Aliança da Terra, uma espécie de cavalaria moderna, que tem como objetivo provar que há lugar para a sustentabilidade de resultados no agronegócio, mediante a combinação de lucratividade e respeito à natureza, já foi tema de inúmeras reportagens no Exterior. A entidade criada por Carter já foi objeto de reportagens na BBC, a estatal britânica de rádio e televisão, em revistas como a The Economist e Beef Magazine, e jornais como o The New York Times. Em todas as matérias, a figura central tem sido o texano Carter, casado com a paranaense de Londrina Ana Francisca Garcia Cid, que ele conheceu na Universidade do Texas quando ambos faziam a pós-graduação em administração rural. Em 1996, por insistência do sogro, Carter vendeu sua herança mericana, desembarcando um ano depois no Brasil, para ser fazendeiro em Mato Grosso.
No fim deste mês, Carter estará sob a luz dos holofotes mais uma vez, como um dos palestrantes do “The 2014 Fortune Brainstorm Green”, promovido pela revista Fortune, na Califórnia, um encontro estrelado que vai reunir 127 CEOs de corporações internacionais para debater temas ligados a investimentos ecológicos conscientes e as oportunidades para se construir relações corporativas. Mas não é somente da imprensa que Carter costuma ser alvo. Universidades e empresas também colocaram a Aliança da Terra em seus radares. Há quatro anos, Carter foi chamado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, para falar sobre a entidade. Na ocasião, a Aliança era objeto de estudo de caso no MBA da Harvard Business School, em Boston.
No início do mês passado, o texano negociava, em Washington, como implantar modelos de gerenciamento de imagens por satélite nas fazendas ligadas à Aliança, e na sequência seguia para o México, a convite de um grupo de produtores daquele país para mostrar como funciona a organização brasileira. “A Aliança da Terra só preencheu um vácuo na sociedade”, diz Carter. Segundo ele, no começo dos anos 2000 o agronegócio brasileiro havia se transformado numa espécie de inimigo público número 1, com os produtores rurais e empresários constantemente acossados por ambientalistas e pelo Governo Federal. “Não havia ninguém em busca de uma solução para os impasses ambientais do lado de dentro da porteira”, diz Carter. “Até mesmo ONGs que hoje se dizem do lado do produtor, naquela época nos tinham como inimigos.”
A proposta de uma entidade ambiental de produtores rurais atraiu propriedades de todos os tamanhos à Aliança da Terra. Há fazendas de sócios poderosos como a própria Universidade Harvard, além de personalidades do mundo dos negócios do porte de José Safra, dono do Banco Safra, do banqueiro Gilberto Sayão, da Vinci Partners, além de produtores e negociadores de grãos, como o Grupo Maggi, tradings como a Archer Daniels Midland (ADM) e até minúsculos produtores de assentamentos rurais, como os da Mata Azul, de Novo Santo Antônio do Rio das Mortes, também em Mato Grosso. A Aliança da Terra se aproximou, inclusive, dos índios xavantes na região de São Félix do Araguaia, com os quais mantém um trabalho de combate a incêndio e de incentivo ao uso de genética melhoradora nos rebanhos bovinos. De acordo com Carter, não há motivo para segregar os pequenos dos grandes produtores. “A gente trata o ser humano como produtor, não importa se ele é grande ou pequeno, e o mesmo vale para os índios”, diz. “As regras servem para todos. O grande não pode queimar sem licença, e o pequeno também não pode.” Aos 48 anos, depois de viver os últimos 17 anos no Brasil, o texano Carter ainda tem um sotaque carregado, mas fala e conhece os problemas do produtor brasileiro como se fosse um nativo. “Cada produtor é um gestor de recursos naturais que tem as mesmas necessidades e deveres”, diz Carter.
O dinheiro gasto nas propriedades associadas foi aplicado na recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e em preservação de matas de reservas legais. Somente de APPs, estão rotegidos 133 mil hectares. Mas, para Carter, isso não basta, é preciso rentabilizar o produtor que cuida desse passivo ambiental. “O problema ambiental é um problema financeiro”, diz Carter. “O preço do alimento que vai para a mesa do consumidor não está embutido no preço da commodity, por isso ninguém paga a quem cuida da natureza.” A seu ver, o valor ambiental deve constar como uma despesa no demonstrativo de perdas e ganhos de uma propriedade porque o custo da oportunidade de manter 50% de mata, ou até 80% nas áreas do bioma Amazônico, deve ser colocado na conta de uma fazenda. “Estamos só no começo dessa história”, diz.
Desde janeiro, a entidade estuda uma metodologia para criar um selo ambiental destinado à carne produzida nas fazendas associadas. Será o primeiro selo de carne bovina com informações sobre o meio ambiente. As primeiras negociações vêm sendo feitas com a marca Celeiro Carnes Especiais, de Rondonópolis (MT). A marca possui três lojas próprias e 28 pontos de venda terceirizada. Neste mês, a Celeiro começa a atuar em São Paulo, na rede de supermercados Mambo, e em supermercados gourmet, entre eles o St. Marche e o Empório Santa Maria. “Estamos estudando um modelo para a Aliança da Terra entrar no portfólio da empresa”, diz Cristiane Rabaioli, diretora-executiva da Celeiro. Em julho, será a vez do lançamento do selo ambiental.
Para fazer o monitoramento das fazendas com potencial de engajamento imediato no projeto do selo ambiental para a carne bovina, a Aliança da Terra contratou a Gestão Agropecuária (GA), de Goiânia, especializada em tecnologias de informação, que já vinha prestando serviços à entidade. Flávio Redi Santos, diretor de TI da GA, diz que é uma questão de ajustes dentro de um sistema que a Aliança da Terra já vem informatizando. “A Aliança possui um colossal banco de dados que pode ser ajustado para mostrar não somente onde foi criado um animal e em que condições, mas que medicamentos foram dados a ele, por exemplo”, diz Santos. O modelo deve ser testado com 30 fornecedores de gado à Celeiro. “Com esse grupo conseguimos mensurar a cadeia”, diz Aline Maldonado Locks, gerente-geral da Aliança da Terra. “Depois replicamos o modelo em escala.”
Para a bióloga Artemízia Moita, responsável pelas ações ambientais na Agropecuária Fazendas Brasil, do banqueiro Gilberto Sayão, neto de cafeicultor e CEO da gestora de fundos de investimento Vinci Partners, com cerca de R$ 16 bilhões em ativos sob gestão, não seria complicado adequar-se às exigências de um selo ambiental. “As fazendas já trabalham com um nível de excelência acima do que é exigido por lei”, diz Artemízia. O grupo, dono de sete fazendas em Mato Grosso e de 47 mil animais, entregou ao frigorífico 15,5 mil animais em 2013, a maior parte terminada em um confinamento em Barra do Garças. “Não temos dúvida de que o consumidor reconhecerá um selo ambiental para a carne e um dia ele vai pagar por isso”, diz Rogério Fonseca, gerente de pecuária do grupo. Essa sensação de que é possível uma valorização do produtor é compartilhada na Pastoril Agropecuária Couto Magalhães, que pertence ao também banqueiro José Safra, controlador do Banco Safra, um grande criador em Mato Grosso, que vende mais de dez mil bezerros por ano.
VALOR DE MERCADO Carter também acredita que um dia o selo da Aliança da Terra terá de fato um valor no mercado. “Investimos muito para que o consumidor, via celular, possa acessar a fazenda que produziu a carne que ele vai comprar no açougue ou no supermercado”, diz Carter. “Estamos fazendo aqui mais do que qualquer outro produtor do mundo já fez.” A Aliança da Terra trabalha com a previsão de que, dentro de três décadas, com uma população mundial que pode chegar a quase dez bilhões de habitantes, os ativos ambientais valerão uma fortuna. “Hoje não valem porque há muita oferta de mata”, diz Carter. “Muita gente diz que quer preservar, mas de que maneira, se o hectare com mata vale R$ 1 mil e desmatado vale R$ 4 mil?”
Na opinião do americano, que foi presidente da entidade por oito anos e hoje está no conselho diretor, a Aliança precisa chegar a cinco mil propriedades rurais para fortalecer sua musculatura e a presença política. Atualmente, 50% das fazendas dedicam-se apenas à pecuária, com cerca de 1,5 milhão de animais. A outra metade cultiva grãos e explora commodities, como madeira. A Floresteca, que tem entre seus sócios a Universidade Harvard, é uma delas. Suas terras chegam a 48 mil hectares, dos quais 22 mil são cultivados com teca, madeira nobre de uso marítimo, no sul do Pará. Para o administrador de empresas Alberto Montenegro, consultor da universidade americana no Brasil, as certificações não dependem mais do País, mas do mundo. “Cumprimos exigências de ISO 14000 muito mais severas do que pedem as leis ambientais brasileiras”, diz Montenegro. Desde 2007, a Floresteca exporta para a Europa, mas está de olho em mercados como os da China, Índia e Vietnã.
Para os produtores de grãos, a Aliança da Terra pode significar a abertura de um mercado cobiçadíssimo, o americano. Desde a seca de 2011, quando pela primeira vez na história os Estados Unidos compraram milho de Mato Grosso, Carter vem trabalhando com a possibilidade de abrir um caminho perene de venda aos seus conterrâneos. “Mesmo com a logística complicada, levar milho do Brasil para os confinamentos de bois no Texas fica mais barato do que o produtor americano comprar milho em seu país, que vai quase todo para o etanol”, diz ele. A ideia para viabilizar o esquema é utilizar os navios de fertilizantes importados dos EUA que costumam retornar vazios aos seus portos de origem. Nos últimos meses, Carter vem negociando essa alternativa com um terminal, no Golfo do Texas, e com compradores de carne, em Washington, que poderiam fornecer o milho para os confinadores de gado. “Vamos achar um caminho para o milho das fazendas da Aliança da Terra.” Entre os interessados nessa conversa estão grandes grupos, como o Maggi, da família do senador Blairo Maggi (PR-MT), que, além de incentivar, desde 2012, a adesão de seus forparaíso necedores de cereais, decidiu, no mês passado, que suas próprias fazendas farão parte da entidade.
Aline, a gerente geral da Aliança, está convencida de que um dos fatores para o crescimento da entidade é que seu modelo parte das necessidades das propriedades rurais. “O grande impacto não é ter mais de 700 fazendas cadastradas, mas ver as propriedades promovendo melhorias no campo”, diz Aline. E não são somente questões ambientais que entram na conta. Crianças na escola e vacinação em dia, por exemplo, fazem parte do Cadastro de Compromisso Socioambiental (CCS), um diagnóstico de mais de 90 itens sob a lupa de 13 analistas, de agrônomos a veterinários e biólogos, e de uma equipe de 30 técnicos que visitam fazendas e tabulam dados. Para sustentar esse trabalho, a Aliança recebe doações de fundações nacionais e internacionais, entre elas as americanas Moore, da fabricante de chips Intel, e Parker, da HP, de computadores. No ano passado, a receita foi de quase R$ 5 milhões. “O que a gente sentiu nesses dez anos é que o produtor não sabe o que fazer”, diz Aline. “Mas, quando as lacunas são diagnosticadas, em geral, 70% do combinado é recuperado.” O modelo de adesão tem mostrado que para cada real investido no produtor, via Aliança, esse produtor investe mais R$ 4 na terra. “O voluntariado tem mostrado que dá mais resultado bater nas costas do produtor em vez de bater na cara”, diz Carter.
Brigadas de incêndio Uma das ações que mais têm chamado a atenção, principalmente do Ministério do Meio Ambiente, são as brigadas de incêndio instaladas nas propriedades rurais e também em nove aldeias indígenas. Na Aliança da Terra, o fogo é o mais temível adversário dos produtores, porque queima sua imagem e também o seu ganha-pão. “Podemos prestar serviços ao governo porque nossos brigadistas são formados com o que há de mais moderno no combate a incêndio na selva”, diz Carter. Já foram treinados 400 brigadistas, dos quais 43 estão prontos para atuar em propriedades rurais e 61 em aldeias indígenas. No ano passado, foram realizados 20 combates a 143 focos de incêndio, totalizando 2,3 mil horas de fogo na floresta. Para alcançar esse nível de excelência, os líderes dos brigadistas da Aliança da Terra receberam treinamento em Iharo, a principal base do serviço florestal americano.
Nas aldeias e nos assentamentos, juntamente com o trabalho de combate ao fogo, a Aliança mantém um trabalho pioneiro. “Não somos inimigos de produtores rurais, sejam eles quem forem”, diz Carter. Com os índios xavantes, estabelecidos na região de São Félix do Araguaia, nas vizinhaças de uma fazenda que já foi sua, uma relação que começou tensa no final dos anos 1990 agora é de cordialidade e de negócios. Hoje, os índios criam gado e são donos de 600 cabeças. Em 2012, a Aliança começou, via programa Pró-Genética, da ABCZ, a fornecer touros às aldeias. Com isso, os índios conseguem vender o gado em leilões, como os da leiloeira Estância Bahia, para grandes confinadores. “Antes, eles vendiam o bezerro na barriga da vaca, por R$ 300; hoje, vendem por R$ 800 e ainda protegem suas terras”, diz Carter. Para ele, há potencial para criar até cinco mil bezerros por ano, levando renda aos indígenas do Araguaia. O mesmo acontece nos assentamentos, nos quais já foram vendidos a preços módicos 2,4 mil animais para o melhoramento dos rebanhos, estimados em um total de 30 mil animais. “Produção sustentável é dinheiro no bolso, para todo mundo”, afirma Carter. “Como se diz em Mato Grosso, produtor no vermelho não cuida do verde, seja ele quem for.”