08/10/2018 - 11:00
A primeira cena do documentário “O mundo segundo a Monsanto”, produzido pela francesa Marie-Monique Robin, mostra uma horta no subúrbio de Paris, na qual um produtor questiona se é biodegradável o herbicida da marca Roundup, produzido pela multinacional americana desde 1974. Na cena seguinte, um produtor que caminha por um campo de soja no Estado de Iowa, o principal produtor de grãos dos Estados Unidos, recomenda o uso do produto. O tempo do documentário, facilmente encontrado na internet, é 108 minutos. Mas se engana quem espera por uma análise isenta sobre o princípio ativo do herbicida, o glifosato, um composto orgânico formado por moléculas de carbono e de fósforo, capaz de matar ervas daninhas folhosas e também gramíneas. O documentário, produzido há uma década, ainda mantém atual a sua principal polêmica: o uso de defensivos agrícolas – agrotóxicos como manda a legislação brasileira, ou pesticida, como no resto do mundo. No Brasil, desde o fim do mês de junho, um projeto de lei tenta colocar alguma luz sobre o tema.
Chamado de PL 6.299, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, agora à espera das discussões no Senado, está à deriva e sem um movimento que lhe dê rumo. Tudo leva a crer que esse é um tema para 2019, para o novo governo do País. Além disso, para azedar ainda mais o humor que reina no setor do agronegócio, no início de agosto, uma juíza do Distrito Federal determinou que seja reavaliada a autorização para o uso do herbicida no País, um processo que se arrasta no governo desde 2008, sob pena de sua proibição. Corrobora nessa investida contra os defensivos, a decisão de um júri de primeira instância, na Califórnia, que condenou a Monsanto a indenizar em US$ 289 milhões o jardineiro Dewayne Johnson, que afirma ter contraído câncer após o uso do herbicida. A alemã Bayer, que comprou a Monsanto por US$ 63 bilhões há dois anos, informa que vai recorrer. No Canadá, o governo anunciou no mês passado, que em três anos vai eliminar dois defensivos que podem estar ligados à morte de abelhas. Anteriormente, a Agência de Controles de Pragas desse país já havia suspendido o pesticida Imidacropride, usado no cultivo de grãos. O fato é que mais uma vez a utilização de produtos químicos para o controle de pragas e de doenças nas lavouras entrou em rota de colisão. De um lado há os defensores de seu uso com regras e boas práticas, embora haja controvérsias sobre o que isso signifique na prática. De outro lado estão ambientalistas coléricos que não aceitam um passo adiante para entender o dilema da produção sem proteção química. “Modernizar a legislação não significa flexibilizar ou facilitar o registro de defensivos agrícolas”, diz Silvia Fagnani, diretora-executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg). “Modernizar significa incluir critérios objetivos na avaliação, respeitando metodologias científicas, que assegurem a competitividade da agricultura brasileira.” O Sindiveg representa 35 empresas, entre elas Bayer, Basf, FMC, Arysta, Ourofino, Syngenta, entre outras. No ano passado, esse setor comercializou no País US$ 8,9 bilhões, de acordo com o Sindiveg. O mercado global é estimado em US$ 65 bilhões por ano.
No Brasil, os produtos à disposição do mercado utilizam na sua composição 233 ingredientes ativos – princípios, moléculas ou fármacos –, na linguagem técnica. Entre eles o glifosato, o triazol, o benzilato e tantos outros (a lista pode ser acessada no endereço http://agrofit.agricultura.gov.br). Desse total, não há dados oficiais atualizados sobre moléculas em uso no País e proibidas no exterior. Questionados por DINHEIRO RURAL, a Anvisa, o Sindiveg, além da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef) e da Fundação Oswaldo Cruz, não souberam informar a quantidade dessas substâncias. Já o número de princípios ativos à espera do parecer da Anvisa é de 32, para que possam ser formulados em diferentes produtos.
A gênese do tumultuado movimento em torno dos defensivos, nos últimos meses, está em uma única causa: o tempo dispensado à burocracia oficial para que uma molécula seja aprovada para o uso no campo. Daí deriva as demais, como a segurança, as práticas de aplicação, os controles da toxidade e de resíduos. De modo geral, o Brasil leva uma década para validar produtos utilizados em outros mercados. Isso porque o País não possui centros de inovação que levem às descobertas de princípios ativos eficientes para uma determinada lavoura local ou para a sanidade dos rebanhos. Esse jogo de inteligência acontece lá fora, nos laboratórios de multinacionais, como Bayer, Basf, Syngenta, Dow, entre outras, e também em instituições oficiais, como a americana Environmental Protection Agency. Nessa longa espera, dois outros produtos foram colocados em xeque pela juíza federal, junto com o glifosato, e em processo de revalidação há alguns anos. Estão na lista o tiram, um herbicida foliar, e a abamectina, um endectocida destinado a animais, que combate verminoses, bernes e carrapatos.
Em volume, o Brasil é sim o maior consumidor global de defensivos agrícolas. E a explicação é óbvia: o País é um dos maiores produtores globais de alimentos, embora até a década de 1970 estivesse entre os maiores importadores. Em relação à quantidade de produto por área cultivada, fica atrás de Japão, Alemanha, França e Reino Unido. Em volume de alimentos por quantidade de defensivos, fica na 11ª posição, atrás de Estados Unidos, Austrália, Espanha e a vizinha Argentina, de acordo com dados apresentados no ano passado durante o fórum “Diálogo: Desafio 2050 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, em São Paulo, no qual estavam entre os seus promotores a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Embrapa. Mas no embate sobre agroquímicos esses dados pouco importam.
Há hoje um emaranhado de projetos de lei e de solicitações em andamento, sendo a mais polêmica o PL 6.229 (confira o quadro Regulação Controversa abaixo), aprovado em junho na Câmara dos Deputados. Em julho, a Anvisa publicou no seu boletim informativo interno a orientação de serviço 49/2018. Ela passaria despercebida se não fosse o tema tratado: a aprovação, pela primeira vez no Brasil, do processo de registro de agrotóxicos por analogia. Ou seja, para a Anvisa, os agrotóxicos que já foram validados por agências reguladoras dos Estados Unidos e da Europa estão autorizados para o uso no País, tirando do órgão o poder de análise e de liberação do uso de defensivos agrícolas. A ação é contrária ao comunicado publicado no mesmo período, pela agência, sobre o substitutivo do PL 6.299, que entre outros pontos polêmicos, tira a responsabilidade sobre os registros de agrotóxicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Nacionais Renováveis (Ibama), além da Anvisa. Questionada sobre o objetivo da orientação pela equipe da DINHEIRO RURAL, a diretoria da Anvisa não se manifestou. Já o Ibama negou que possa haver algum movimento nesse sentido por parte do instituto. Segundo Suely Araújo, presidente do Ibama, as condições ambientais dos países são diferentes, o que interferiria no processo de análise dos produtos. “Em razão disso, o instituto desenvolve avaliação de risco ambiental para que as peculiariedades brasileiras sejam contabilizadas”, diz Suely.
Para entender melhor o que está em jogo é preciso voltar no tempo. Em 1989 foi criada a Lei 7.802, que dispunha sobre o registro, controle, pesquisa e comercialização dos agrotóxicos. Para atualizar a lei de 13 anos atrás, Blairo Maggi, ministro da Agricultura, criou o PL 6.299, colocado em votação agora. A diretora do Sindiveg diz que a modernização da lei é necessária. “Hoje, em países com agricultura de altíssima representatividade econômica, como é o caso do Brasil, o registro leva em média dois anos”, diz ela. No Brasil, a média é de oito anos, mas pode chegar a uma década. Para Antonio Alvarenga, presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), o processo exageradamente lento e burocrático impede os agricultores de utilizar produtos mais eficientes e menos tóxicos. “Nós precisamos de tecnologias mais modernas”, diz ele. A modernização das regras permitiria retirada de produtos obsoletos, moléculas ainda utilizadas aqui e não mais lá fora.
No Brasil, o Mapa já detém autonomia para a concessão de uma série de autorizações, sem a necessidade de interferência de outros órgãos. Mas, no caso dos defensivos, para expedir uma autorização ele precisa de avaliações técnicas das áreas de saúde e de meio ambiente. Luis Eduardo Pacifici Rangel, secretário de Defesa Agropecuária do Mapa, diz que estabelecer regras para essa condição eliminaria burocracias e alinharia o País com as tecnologias já adotadas pela comunidade de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. “A tramitação em uma única agência é feita na maior parte dos países, mas não aqui”, diz Rangel.
No caso do PL 6.299, que recebeu complementações antes de ser apresentado pelo deputado Luiz Nishimori (PR/PR), a Anvisa e o Ibama engrossam um movimento liderado por celebridades, como a modelo internacional Gisele Bündchen e a chef gastronômica Paola Carosella. Elas apoiam a petição “Chega de Agrotóxicos” para barrar o PL. Até o mês passado, ela contava com 1,6 milhão de assinaturas. Esse tipo de ação seduz a opinião pública. Um dos pontos de maior controvérsia nesse debate é o temor de que a redução dos encargos por parte da Anvisa e do Ibama possa piorar a qualidade das análises. Isso porque ele abre um precedente para outras questões, como autorizações prévias de comércio, relaxamento de risco do uso de produtos, entre outras questões. O Sindiveg, que representa a indústria, já escolheu um lado. “Apoiamos a manutenção de responsabilidades no processo de registro de defensivos agrícolas entre o Mapa, a Anvisa e o Ibama”, diz Silvia. Para Andreia Ferraz, gerente de Ciência Regulatória da Andef, é preciso ficar claro que a entidade não apoia aprovação de produtos com qualquer nível de insegurança à população ou ao meio ambiente. “Seja por análise de perigo ou de risco”, diz ela. “É preciso avaliar a exposição de substâncias à população, algo que com a atual legislação não ocorre.”