Das grelhas de assados do restaurante Rubaiyat, em São Paulo, bifes suculentos e macios saem direto para a mesa de seus frequentadores, enquanto uma dona de casa escolhe o contrafilé para o churrasco da família, em um dos supermercados da rede Pão de Açúcar, em Salvador. Apesar da distância, esses consumidores compartilham uma certeza: a carne é sadia, pois os dois estabelecimentos costumam abastecer-se de produtos submetidos à fiscalização sanitária das mais rigorosas. No entanto, nem sempre isso é uma regra que se aplica para os mais de 40 milhões de bovinos abatidos anualmente no País. Pelo menos um quarto desse total vai para abatedouros mal controlados, operados sem as mínimas condições de higiene e limpeza ou cuidados com a saúde dos animais. Não por acaso, nos últimos meses o assunto passou a ocupar um lugar prioritário na pauta de discussões em todos os elos da cadeia da carne bovina, um setor que movimenta R$ 330 bilhões por ano no País, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Dono do segundo maior rebanho do mundo, com mais de 200 milhões de cabeças, atrás apenas da Índia, o Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo, com 1,2 milhão de toneladas vendidas lá fora anualmente.

O problema central é que a carne mal fiscalizada leva risco não apenas à saúde pública, como compromete toda a cadeia de valor da indústria que trabalha corretamente para oferecer ao mercado carne saudável e sem risco de doença ao consumidor. Por isso, indústrias e governo concordam que chegou a hora de arrumar a casa. A pergunta é como fazer. “A saúde pública está em jogo”, disse Renato Costa, presidente da divisão de carnes da JBS, durante mesa-redonda realizada no mês passado pela DINHEIRO RURAL, em São Paulo, com representantes dos três principais grupos frigoríficos do País – além da JBS, o Marfrig e o Minerva (confira na pág 48). “Nós vamos mexer na fiscalização da carne bovina”, afirma o médico veterinário Ênio Marques Pereira, titular da Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), órgão do Ministério da Agricultura, responsável pela vigilância sanitária no País. “A reformulação da nossa fiscalização sanitária faz parte do Plano Plurianual 2012-2015.” Segundo Marques Pereira, a presidenta Dilma Rousseff vai apresentar, em junho, as mudanças que serão realizadas para dar mais garantia sanitária à carne brasileira. A ideia é mexer no atual sistema de fiscalização e fazer com que os frigoríficos cujo abate é submetido aos governos estaduais e municipais possam vender carne em todo o território nacional, equiparando-se aos que são controlados pelo Sistema de Inspeção Federal (SIF). “A adesão será voluntária”, diz Marques Pereira.

Em princípio, os consumidores que frequentam restaurantes de primeira linha, como o Rubaiyat, e os que fazem suas compras nas lojas de redes como o Pão de Açúcar confiam nas carnes que lhes são vendidas, pois na origem são fiscalizadas por técnicos federais, credenciados pelo Ministério da Agricultura. No entanto, nos últimos tempos, não basta a garantia de que a carne que adquirem é de boa qualidade. Os consumidores, engrossados pelo novos contingentes que ascenderam à classe média, querem mais: eles exigem saber qual a procedência do gado abatido, as condições de abate e de saúde dos animais, desde a origem nas fazendas. Em resumo: aqui, o nome do jogo é rastreabilidade. Que começa no campo, na visão do empresário Belarmino Iglesias Filho, sócio da rede Rubaiyat e fazendeiro.“A responsabilidade de uma fazenda é garantir carne sadia e saborosa ao consumidor, usando a inteligência”, diz Iglesias, que abate cinco mil animais, por ano, na fazenda Barra Dourada, em Dourados (MS).

Com cerca de dez mil hectares, a fazenda pertence à família Iglesias desde a década de 1960. Hoje, dividindo a área entre agricultura e pecuária, são criados na propriedade animais da raça brangus. Em junho, Iglesias começa a abater cruzados da brangus com a raça japonesa wagyu, cuja principal característica é uma carne marmorizada de gordura, muito macia e de sabor marcante. “É o nosso ouro vermelho, sadio, saudável e suculento”, diz Iglesias, animado em entregar ao mercado um produto inédito no País. O primeiro lote a ser abatido de wangus – nome dado a essa cruza bovina – é de 500 animais e está em fase final de engorda no confinamento. “Mas até chegarem nessa fase eles atravessaram um longo caminho”, diz Iglesias. “A sanidade do rebanho começa na vaca, porque é ela que vai gerar a carne que estará na mesa do consumidor.”

Para o agrônomo Sérgio Pereira, gerente da Barra Dourada, a parte mais fácil de controle da sanidade animal está na fazenda. “É básico seguir o calendário de vacinações, os exames reprodutivos e olhar para que o animal tenha conforto dentro da fazenda”, afirma Pereira. “Mas cuidar da sanidade não é simples.” Segundo ele, os erros acontecem em fazendas com baixo uso de tecnologia, em decorrência da mão de obra mal treinada, e podem se suceder em cascata em toda a cadeia. “A fazenda pode acabar com a indústria frigorífica e vice-versa”, afirma Pereira. “Por isso, quero que o frigorífico olhe a nossa fazenda como um fornecedor de carne de qualidade e saudável.” Atualmente, todo o gado da Barra Dourada é entregue à Marfrig. Pelo menos duas vezes por ano, auditores contratados pelo grupo frigorífico visitam a fazenda. “Eles chegam, olham, conversam e vão embora”, diz Pereira. “É bom que isso aconteça, porque podemos sempre melhorar processos, mesmo com o nosso nível de excelência.”

O pecuarista Marcelo de Figueiredo Pimenta, dono da fazenda Santa Vitória, em Bela Vista de Goiás, é outro que aposta em melhorias de processo para entregar à indústria carne saudável. A propriedade do pecuarista tem 1,5 mil hectares e engorda, em confinamento, 1,2 mil animais por ano, cruzados de nelore com a raça rúbia galega. “Criar gado é como fazer a tarefa de casa, todos os dias”, diz. “Precisa de atenção.” Desde 2008, Pimenta vende seu gado gordo ao grupo Pão de Açúcar, para o programa de carne Qualidade Desde a Origem (QDO), que garante ao consumidor a rastreabilidade total na cadeia de produção e a sanidade do produto. No dia 4 de abril, em São Paulo, Pimenta era uma das pessoas a contar sua experiência de pecuarista a uma plateia de 120 convidados do Pão de Açúcar, entre executivos da indústria frigorífica, associações de produtores e representantes do governo e do Ministério Público Federal. Na ocasião, foi anunciada a extensão do programa QDO a 100% da carne nas 600 lojas do grupo.

Mensalmente, uma média de 3,5 mil toneladas de carne bovina é vendida pelo Pão de Açúcar. Para abater os animais das fazendas participantes do QDO, o grupo tem como parceiros os frigoríficos da JBS, Marfrig, Barra Mansa e Vale Grande. Segundo Leonardo Miyao, diretor comercial de perecíveis do varejo do Pão de Açúcar, o programa integra a plataforma comercial da empresa com o sistema dos frigoríficos, com transparência total. “Criamos um canal de comunicação direta com os frigoríficos, que vai promover melhoria na compra dos animais e nos processos de abate”, diz Miyao. No entanto, é preciso uma certa cautela, alerta o economista Francisco Vila, consultor da Sociedade Rural Brasileira e do programa QDO, para quem não será fácil implantar esse sistema de fidelidade total da cadeia, embora haja um caminho sinalizado. “A máxima de que o olho do dono engorda o boi está indo por terra”, diz Vila. “Finalmente, no Brasil, o olho mudou de dono. Agora, tudo gira em torno do que o consumidor quer.”

Para Vila, a nova lógica do setor passa pelas parcerias e pelos corredores de excelência, como o QDO, que mostram a carne como um produto de acordo com a legislação, que não é proveniente de abate ilegal e foi inspecionado. “Todos os elos da cadeia da carne sabem o que precisa ser feito”, diz Vila. Mas, segundo ele, cabe aos frigoríficos uma tarefa industrialmente desafiadora, que é a garantia da qualidade da carne, inclusive a sanitária. No ano passado, segundo dados da Abiec, o abate de gado no País gerou um volume de carne da ordem de 9,4 milhões de toneladas em equivalente carcaça, que é a carne ainda com osso. Desse volume, 7,7 milhões de toneladas, 82% do total abatido, abasteceram o mercado interno. O consumo do brasileiro é de 40 quilos per capita-ano, um dos maiores do mundo, atrás apenas de Uruguai, Argentina, Estados Unidos e Austrália. No próximo ano, o País deve romper a barreira dos 10 milhões de toneladas de carne produzidas e até 2022 se aproximar de 12 milhões de toneladas. “É um grande desafio para um setor ainda em estruturação.”

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano passado, o Brasil possui 1,3 mil unidades frigoríficas em atividade, das quais 206 têm seus abates inspecionados pelo governo federal, 422 unidades são inspecionadas pelos governos estaduais e 762 unidades têm controle sanitário a cargo dos municípios. Esse sistema de controle tem funcionado muito bem nos estabelecimentos que contam com o Serviço de Inspeção Federal (SIF). O serviço responde por 22,7 milhões dos atuais animais abatidos, menos da metade de sua capacidade instalada, estimada em 65 milhões de cabeças, de acordo com o SIF. A maior parte desse abate é promovida em unidades de grandes grupos, entre eles JBS, Marfrig e Minerva. É o selo do SIF que dá condições à carne para que ela seja exportada ou vendida em todo o território nacional. Mas isso não ocorre nos níveis da fiscalização estadual, que inspeciona quase cinco milhões de animais, e na municipal, com 2,3 milhões de abates, que somente podem ser vendidos no mercado interno, sendo restritos às jurisdições dos órgãos de fiscalização. Em abril, um estudo denominado “Radiografia da Carne”, mostrando o nível degradante das fiscalizações que não têm o aval do SIF, foi apresentado pela ONG Amigos da Terra e levou a indústria que trabalha de acordo com a legislação, e de forma correta, ao desespero, com receio de que os consumidores associassem a imagem de animais sendo abatidos de forma inadequada com o que acontece dentro de suas unidades. O JBS, por exemplo, reagiu rapidamente com uma campanha em todos os canais de televisão do País, estrelada em horário nobre pelo ator Toni Ramos, para mostrar ao consumidor os seus funcionários manipulando a carne dentro dos padrões rígidos de sanidade animal.

Para Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra, a transparência do setor pode levar a mudanças rapidamente. “A fiscalização inadequada expõe o consumidor a mais de dez tipos de doenças graves”, afirma Smeraldi. No dia do lançamento do QDO, do Pão de Açúcar, ele dizia que em cerca de três anos será possível mudar o padrão dos produtos fiscalizados. “Basta articular a cadeia e fazer com que a carne não seja um produto desconhecido para o consumidor.” Segundo ele, pode ocorrer para toda a fiscalização sanitária da carne bovina o que aconteceu com o café na década de 1990. “Hoje, o café tem uma cadeia certificada e qualificada, e o consumidor toma mais essa bebida”, diz. “Antes havia fraude e o produto era ruim.”

O governo reconhece as falhas no sistema de fiscalização em parte da carne bovina produzida, admitindo, também, que o tema foi negligenciado nos últimos anos pelos órgãos que deveriam fiscalizar toda a carne e não apenas parte dela. “A indústria frigorífica no Brasil sempre esteve na vanguarda tecnológica”, diz Marques Pereira, da SDA. “Não foi por acaso que, na década de 1980, o País passou a ter acesso a mercados internacionais e se tornou o maior exportador mundial.” No entanto, esse movimento parou por aí. Somente a partir do ano 2000 o governo federal voltou a olhar para a fiscalização total do mercado interno e criou o Sistema Brasileiro de Inspeção (Sisb), com os três níveis de inspeção sanitária. “Mas a resposta da fiscalização estadual e municipal foi pífia e o governo ficou mais uma vez andando a passo de tartaruga”, diz Marques Pereira. A fiscalização sanitária somente reapareceu no radar do governo no ano passado, quando foi incluída no Plano Plurianual, o PPA 2012-2015, que é um conjunto de intenções de política pública, considerado prioridade pela Casa Civil da Presidência da República. “A fiscalização da carne é uma demanda direta da presidenta Dilma”, diz Marques Pereira.

A reorganização do Sisb tem como meta criar um sistema de auditoria conjunta dos três níveis de fiscalização e dar equivalência àquelas unidades frigoríficas que queiram se igualar ao SIF. “É possível a convivência da pequena e da grande indústria frigorífica”, diz Marques Pereira. “Em mercados como os do Canadá, Austrália e dos países europeus, isso acontece e cabe ao consumidor escolher o que deseja.” Segundo ele, ainda neste ano o governo vai repassar R$ 15 milhões ao SIF e R$ 150 milhões às agências estaduais de defesa sanitária. “O conceito do Sisb é ter uma regra única para todos, e a indústria com o SIF, moderna e eficiente, pode ajudar nesse processo”, diz Marques.