01/07/2010 - 0:00
Floresta alagada: a rusticidade é a marca da “captura da fera” realizada nas comunidades ribeirinhas
“Vlapt”. Uma lança é arremessada nas águas barrentas do famoso rio Solimões, um verdadeiro oceano de água doce, que atravessa a imensidão da Floresta Amazônica. Enquanto se equilibra em sua pequena canoa, o jovem pescador Elison Lopes observa atentamente o resultado de sua investida. O golpe quase sempre é certeiro, mas dessa vez ele não teve sorte e por uma fração de segundo deixou escapar sua “presa”, o pirarucu. Um dos maiores peixes do mundo, que chega a medir três metros de comprimento e pesar 100 quilos, razão pela qual sua pesca é conhecida entre os nativos como “a captura da fera”. Lopes é morador da comunidade de São João do Catuá, localizada entre as reservas do Mamirauá e Ipixina. Um lugar onde o acesso só é possível de barco ou hidroavião e a cidade mais próxima, Tefé, está a quase 700 quilômetros de Manaus, capital do Amazonas. É nessa região longínqua que se concentra a produção dessa espécie, cercada de lendas e histórias, considerada o principal símbolo de um modelo de pesca realizado nos braços dos maiores rios do Brasil e que ao longo dos anos vem se mantendo de forma rústica, artesanal e, principalmente, sustentável. “Toda a pesca é controlada, tanto no volume quanto nos locais onde pode ser realizada”, conta o pescador, que, assim como a grande maioria dos moradores dessa região, se aventura pelos igarapés formados em meio à mata alagada, enfrentando cobras e jacarés, na busca pelo seu peixe. “Quando temos sorte, conseguimos voltar de uma única pescaria com até 200 quilos de pescado no barco. Mas às vezes a sorte está do lado do peixe”, resigna-se.
Na rede e na lança: pescadores, como o jovem Elison Lopes (à esq.), usam diferentes técnicas para trabalhar no rio Solimões, na Amazônia
Com forte apelo ecológico, a procura, não só pelo pirarucu como também por várias espécies amazônicas como o tambaqui, piramutaba, dourado do Amazonas, filhote, entre outros, tem crescido nos últimos anos. Em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, se multiplicam os restaurantes especializados nesse tipo de peixe e vários países, principalmente na Europa, demonstram interesse em comprar o produto. Para aproveitar esse mercado, ainda pouco explorado, um amplo projeto tocado pelo governo do Estado, em parceria com instituições e empresas, pretende reorganizar a pesca naquela região e buscar formas de agregar mais valor a sua produção. “Existe um grande potencial de pesca nessas comunidades. A cota é de 1.500 toneladas por ano. Mas hoje, por conta dos problemas de logística e de venda, só se retira dos rios 50% desse volume”, conta o chefe do departamento da cadeia produtiva do pescado da Agência de Desenvolvimento Sustentável (ADS), órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Rigoberto Pontes. Segundo o diretor, a ideia não é necessariamente aumentar a produção, já que praticamente toda a pesca na Amazônia é feita em reservas protegidas e com acesso limitado. O plano é valorizar mais o preço do produto. “Hoje o preço médio do pirarucu é de R$ 4,50 o quilo.
Podemos melhorar isso, sobretudo atingindo o mercado externo. Temos um projeto chamado Zona Franca Verde, que pretende encontrar caminhos para uma melhor comercialização, com produtos certificados e rastreados”, pondera Pontes.
Meninos do rio: João Tezza (à esq.) e Marcelo Neves. Unindo forças para reorganizar a atividade pesqueira da região
A iniciativa já atrai grandes empresas do setor, como a nordestina Noronha Pescados, que planeja lançar uma linha de peixes amazônicos, voltada para exportação. “Temos um amplo mercado para ser trabalhado”, afirma James Loureiro, uma espécie de consultor que vem intermediando o contato da empresa com o governo do Estado e instituições. “Tanto no Brasil como no Exterior, os peixes amazônicos certificados, pescados de forma sustentável e com comércio justo, têm um grande valor comercial. No futuro, poderíamos ter uma marca unificada, juntando frigoríficos e pescadores, e atender esses grandes mercados”.
Dono do frigorífico Santa Maria, localizado no município de Manacapuru, Marcelo Neves sabe bem das dificuldades de se trabalhar com esse tipo de produto. “Um dos grandes desafios é a produção sazonal. A pesca na Amazônia acontece na época da seca, quando as águas dos rios começam a baixar. Um período que dura apenas seis meses. Ou seja, temos peixe por metade do ano, depois temos que lutar para manter o frigorífico”, conta o empresário. Mas ele acredita no potencial da região. “Compro cerca de 1,5 mil toneladas por safra. Mas, se tivesse 12 mil toneladas, teria mercado”, pondera.
Numa região tão peculiar, onde grande parte das casas e dos comércios literalmente flutuam ao longo do rio, manter um sistema de comercialização constante é, de fato, o grande desafio. “Fora da safra, pescamos apenas para subsistência. Também não temos estrutura para armazenar o que pescamos”, conta o experiente pescador Manoel Lino Andrade. Ele explica ainda que a venda se dá dentro da própria comunidade, para compradores que depois revendem aos frigoríficos da região. “Esses compradores nos adiantam dinheiro para a compra dos materiais e até para nos mantermos durante o período em que não se pode pescar”, conta Andrade. É justamente esse sistema de venda que o projeto pretende modificar.
Tem que ter fé…
Chegar a essas regiões é uma verdadeira odisseia. Para encontrar os pescadores, a equipe de DINHEIRO RURAL viajou duas horas em um hidroavião, até pousar nas águas do Solimões. Enquanto produzíamos as fotos, a noite caía e com ela a impossibilidade de decolar. Depois da tentativa frustrada de chegar de barco até Tefé e de passar três horas perdidos no rio, o jeito foi dormir na comunidade e degustar um bom tambaqui.
PRINCIPAL BACIA PESQUEIRA ESTÁ LOCALIZADA A 675 QUILÔMETROS DE MANAUS
Partindo da capital do Amazonas, de barco, são necessários cinco dias e meio para fazer a travessia
1,5 mil toneladas é o volume anual da cota pa ra pesca, mas apenas 50% disso é retirado do rio
James Loureiro: o consultor aponta os caminhos para empresas que querem investir na região amazônica
“Queremos ajudar empresas interessadas em estabelecer um comércio mais justo na região”, explica o superintendente técnico-cientifico da Fundação Amazônia Sustentável, João Tezza Neto. A instituição, formada em parceria com o governo do Estado e o banco Bradesco, é responsável por coordenar as ações nas comunidades ribeirinhas. “Nossa meta é promover arranjos produtivos e certificação de produtos que aumentem o valor recebido pelo produtor e que façam com que a floresta seja mais valiosa em pé do que derrubada”, conta o superintendente da entidade, que possui hoje um fundo de R$ 60 milhões para investir nesse tipo de ação. Enquanto as empresas não chegam, os pescadores da Amazônia continuam vivendo no ritmo dos rios e lutando para capturar suas feras.