01/10/2010 - 0:00
Atentos aos mínimos detalhes, os fiscais do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) vasculham propriedades rurais em todo o Brasil em busca de trabalhadores na chamada “situação análoga à escravidão”. Na lista dos mais de 240 itens a serem verificados estão o registro dos funcionários, os equipamentos de segurança, o pagamento de salários, as condições dos alojamentos e até o espaço entre as camas, que deve ser de no mínimo um metro. A busca é implacável. Tanto que só neste ano, foram cerca 1.692 autos de infração lavrados, que atingiram inclusive grandes grupos, como as terras arrendadas à Cutrale e três fazendas de Ivan Zurita no interior de São Paulo, em agosto, onde os funcionários recebiam salários fraudados, não tinham água potável, equipamentos de segurança nem transporte. Resultado: autuação por trabalho análogo à escravidão. A situação que coloca como escravocratas grandes produtores rurais suscita dúvidas. Afinal, o que de fato caracteriza o trabalho escravo nos dias de hoje? “Hoje, a escravidão se faz de forma velada, por meio da pressão psicológica”, explica Carina Bicalho, procuradora do Ministério Público do Trabalho.
Jank, da unica: a legislação não é clara e dificulta entendimento do assunto
A palavra é polêmica e ainda desperta muitas divergências. Em janeiro deste ano, em uma autuação à usina Junqueira, contratada da Cosan, a sentença judicial apontou não existirem os requisitos básicos para que se configurasse a escravidão. Assim, o grupo conseguiu evitar que seu nome permanecesse ao longo de dois anos na lista suja do trabalho escravo, graças a uma liminar. “Não existe trabalho escravo, o que existe são práticas degradantes”, explica Marcelo Garcia, secretário-executivo da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), uma opinião considerada controversa por Eduardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil, que luta contra a prática. “É um absurdo. Em muitos locais, os trabalhadores estão sob servidão por dívida, presos”, explica Sakamoto, ao se referir às quase 38 mil pessoas libertados em 1.007 operações realizadas entre 1995 e 2010. Marcos Jank, presidente da União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica) defende que haja uma revisão da legislação, para que a fiscalização seja feita de forma mais objetiva. Além disso, ele considera a lista suja do trabalho escravo algo punitivo. “Falta uma melhor tipificação. A legislação é vaga e acaba prejudicando muitas empresas.”
Em meio à divergência de opiniões está também a falta de informação. Pelo menos é o que constata Garcia, da CNA. Para ele, além de uma legislação complexa que dificulta o cumprimento e a compreensão, muitas vezes os produtores que vivem em regiões distantes nem sequer sabem quais são as regras para se contratar um empregado. “Considerar uma propriedade como usuária de trabalho escravo só porque não cumpre a distância entre as camas é um exagero”, sentencia ele. Caio Magri, assessor de políticas públicas do Instituto Ethos, acha que o problema vai muito além do espaço entre camas ou pinturas em alojamentos. Ele explica que as quatro principais condições que configuram o trabalho escravo são a impossibilidade de ir e vir, a submissão de pessoas a jornadas exaustivas, a condições degradantes onde estão inclusos desde alojamentos precários até a falta de equipamentos de segurança e, por fim, os documentos que comprovem a servidão por dívida. “Na maior parte das autuações, os fiscais encontram as quatro simultaneamente.” Para Jank, é justamente essa mistura de itens que dificulta a caracterização. “Trabalho degradante é um conceito subjetivo e diferente de trabalho escravo.”
Com o intuito de esclarecer os produtores, desde 2009 a CNA vem desenvolvendo um trabalho cujo objetivo é orientar os empregadores sobre a necessidade de regularização das condições dos trabalhadores. Neste ano, a meta é visitar 20 mil propriedades. “Quem é aprovado recebe um selo de garantia de que ali não há irregularidades”, conta Garcia. A criação da Associação Brasileira de Direito do Agronegócio também ampliou o espaço para discussões sobre o assunto. Alexandre Beçak David, presidente da entidade, conta que um dos objetivos é informar sobre as principais questões do setor, especialmente com relação à legislação trabalhista. “É um assunto de grande importância diante do papel do Brasil no agronegócio mundial.” Jank concorda, mas alerta: “O produtor precisa ter o direito de se defender.” Agora, só falta que todos se entendam.