Nascido e criado em uma fazenda do interior da Irlanda, Kieran Gartlan rompeu as tradições familiares ao decidir que não queria ser produtor rural. Formado em economia, chegou ao Brasil em 1994, meio por acaso, durante uma viagem de mochilão. Aqui trabalhou em bancos. Depois se tornou jornalista da Down Jones. “Foi a primeira oportunidade que tive de trabalhar com o agronegócio”, contou à RURAL, relembrando a época que fazia análises para o setor. Em seguida foi contratado pela Bolsa de Chicago e há quatro anos se tornou sócio e diretor do venture capital de origem americana, The Yield Lab, no Brasil. Uma de suas missões é encontrar startups que tenham potencial de escala e de um retorno agressivo.“Buscamos sempre multiplicar nosso retorno em três ou quatro vezes a cada dois anos, e um retorno médio de nove a dez vezes o investimento”, afirmou. A outra é, quem sabe, encontrar o primeiro unicórnio – como são chamadas as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão – do agronegócio brasileiro.

RURAL – Qual a avaliação que o senhor faz da evolução do agronegócio no Brasil e América Latina desde 1994 quando chegou até hoje?
Kieran Gartlan – Observamos crescimento constante do setor no Brasil amparado por duas forças. Internamente, pela abundância de recursos naturais como terra e água, além de um clima muito favorável. Externamente, por uma demanda global relevante, principalmente da China que foi o driver deste crescimento. Aliado a tudo isso, havia a tecnologia agronômica robusta graças à Embrapa. Era fácil crescer. Mas o grande problema esteve e ainda está fora da porteira. Entre eles logística, estrutura de armazenagem e, principalmente, acesso ao crédito.

Mesmo com dificuldades, o agronegócio acumula bons resultados. O que explica o olhar tardio do capital para o setor como oportunidade de investimento?
A Faria Lima não estava interessada no campo. Dois motivos explicam o atraso. O primeiro é que com os juros altos pagos pelo Brasil, os fundos tinham bons retornos com baixo risco em outras opções de investimento. E isso casa com o segundo, que era a falta de transparência e de visibilidade da agricultura, o que a tornava uma atividade de alto risco.

O que está provocando essa mudança com relação à percepção de risco?
A tecnologia. Ela permitiu dar mais visibilidade ao que acontece dentro da porteira. Hoje é possível, de forma remota, ver o que está acontecendo na propriedade rural durante o desenvolvimento da safra. Esse é um grande diferencial.

É essa demanda por visibilidade que explica o boom de startups ligadas ao agro, as agtechs?
Sim. Essa mudança estrutural começou a atrair também a atenção de outros agentes de fora do agro. Surgiram as agtechs e as agfintechs — startups que trazem soluções financeiras por meio da tecnologia para o agro. Como consequência, os venture capitals, que conhecem muito bem as agfintechs e gostam do modelo de negócio, começaram a se aproximar do setor. Junte as fintechs e o desempenho do agronegócio e a resultante é um mercado muito atraente para os fundos.

Historicamente o produtor é um adepto contumaz de tecnologia para a lavoura, mas resistente àquelas voltadas a soluções que envolviam transações financeiras. Como as agfintechs estão quebrando essa resistência?
Uma das grandes características brasileiras é que todo o ecossistema da agricultura tradicional foi construído para atender aos grandes produtores. Os bancos privados, por exemplo, miravam em clientes acima de 10 mil hectares. Relegavam o pequeno e o médio produtores pois não tinham condições de avaliar os riscos da operação. Isso deixava os dois grupos dependentes de fontes oficiais de recursos. A tecnologia provocará disrupções no agro brasileiro ao democratizar o acesso ao sistema financeiro.

Qual componente que ela traz que não existia até aqui?
A visibilidade do que acontece dentro da porteira por meio de acesso remoto aos dados. Com a tecnologia, o custo de avaliação de risco é o mesmo para qualquer propriedade rural independentemente do seu tamanho. Assim ela resolve o principal problema do campo no Brasil que é como garantir o financiamento dos insumos, da lavoura. O problema do Brasil não está na agronomia. Está na limitação do serviço financeiro em atender essa demanda do produtor.

O Plano Safra ainda é considerado a melhor ferramenta de crédito ao produtor pelo subsídio feito pelo governo federal. As agfintechs conseguirão oferecer alternativas competitivas em prazo e juros?
Há algumas sinergias possíveis entre o sistema tradicional e as startups. Alguns grandes bancos privados, por exemplo, não têm interesse em originar esses produtores [pequenos e médios] porque a rentabilidade dessas operações é baixa. O que alguns deles estão fazendo é oferecer parcerias às fintechs para que elas façam a linha de crédito com o produtor e gerenciem o risco. É uma sinergia bem interessante porque o banco tem dinheiro, mas não tem tanta vontade de ter o trabalho da operação por dificuldade de avaliação de risco e baixo retorno. Já para as startups é um grande negócio porque conseguem chegar ao produtor com uma proposta relevante para começar o trabalho e, ao ganhar a confiança deles, têm a chance de oferecer novos negócios.

Além dos financeiros, que outros serviços são promissores para as startups?
Como venture capital, nosso negócio envolve premissas como crescimento rápido e escala. Por isso não gostamos tanto de tecnologias que tenham hardware ou de soluções que demandam presença física no campo para serem implementadas. Tudo que envolve máquinário e capital intensivo são mais atrativos para o private equity. Nosso negócio são plataformas digitais, softwares e soluções B2B. Dentro disso, as áreas mais promissoras são as agfintechs e as soluções de impacto ESG atreladas à eficiência da propriedade e visibilidade dos negócios.

Consegue dar um exemplo?
O mercado de crédito de carbono. Hoje não tem como verificar se o sequestro de carbono está de fato acontecendo ou se existem outros impactos não visíveis. Então quanto mais tecnologias remotas para gerar dados reais do que está acontecendo no campo, melhor.

A conectividade no Brasil não atrapalha?
A conectividade está cada vez melhor. Não é o cenário perfeito, mas já evoluímos. Na verdade, o grande problema das agtechs é escalar rápido. E isso não é só no Brasil, é no mundo inteiro. Por isso, não vemos tantos unicórnios entre as startups que oferecem tecnologia para o campo em si.

Isso é uma ameaça ao setor de agtechs?
Acredito em uma mudança de modelo. Devemos passar por uma onda de consolidação e verticalização do setor com as agfintechs comprando as agtechs para usar as soluções que elas oferecem para minimizar riscos de crédito.

Esse movimento já está acontecendo?
Sim. Recentemente a Seedz, uma startup do nosso portfólio, adquiriu outras duas startups mais focadas em soluções para dentro da porteira. Uma era a Atomic [plataforma digital que consolida informações do campo], empresa de Uberlândia (MG) que tem um modelo bem interessante e bastante tração, mas cujos sócios não sabiam gerar um faturamento relevante para o produto. A outra era a Perfarm, que oferece um software de gestão de fazendas. O produto também é ótimo, mas o modelo de negócio não era atraente. Ambos os negócios estão indo bem.

Quais são os planos do The Yield Field para o Brasil?
Nós fazemos parte de uma rede global de fundos regionais com presença nos Estados Unidos, Europa, Ásia e América Latina. Aqui na América Latina acabamos de lançar um fundo de dez anos que tem como objetivo captar US$ 50 milhões, sendo que algo entre 35% e 40% serão aplicados no Brasil nos próximos cinco anos. Nos outros cinco anos, buscamos saídas. E o primeiro unicórnio do agro.

Apesar de toda a relevância do agro brasileiro, não temos o sonhado unicórnio [empresa avaliada em mais de US$ 1 bilhão]. O que está faltando?
De todos os lugares em que temos presença, o Brasil é o que mais tem chance de ter um unicórnio no agromegócio, principalmente no setor de agfintechs. Esse mercado é enorme, só de insumos são US$ 100 bilhões por ano e ainda existem possibilidades imensas em expansão de terras, máquinas, infraestrutura. Assim que uma startup chegar à avaliação de unicórnio, outras aparecerão.

O que falta para as startups do agronegócio, as agtechs, chegarem a valores de mercado mais expressivos que os atuais?
Os valuations estavam crescendo muito antes dessa crise recente, mas acredito que essa evolução vai acontecer porque o modelo está funcionando. A TerraMagna, por exemplo, multiplicou em 10 vezes o investimento que fizemos neles em 2019. É uma questão de tempo.

Esse é um retorno bem expressivo.
Buscamos sempre multiplicar nosso retorno em três ou quatro vezes a cada dois anos, e um retorno médio de nove a dez vezes o investimento. Com agfintechs, isso é factível.