10/01/2023 - 17:00
No dia 1.º de janeiro ninguém foi mais tietado na recepção do Itamaraty do que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Todos queriam fazer selfies com o também presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moraes foi abraçado. Ouviu de um convidado: “Você é o cara”. A festa para o ministro escondia uma disfunção do Estado no Brasil, que se agravou em 2022: quando o magistrado vira uma personalidade, como se fosse um político, é porque algo está fora do lugar nas instituições.
No domingo, 8, o ministro expediu seu mais duro despacho desde que se tornou relator do inquérito dos atos antidemocráticos, se configurando como alvo principal do bolsonarismo radical. Além de determinar o afastamento cautelar do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), a decisão ordena centenas de prisões em flagrante, manda intimar governadores, prefeitos e comandantes militares e a realização de diligências para identificar todos os extremistas que invadiram os prédios dos três Poderes, em Brasília.
“A democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois, como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado'”, escreveu Moraes.
A forte reação aos atos golpistas e à depredação das sedes dos Poderes foi, nos últimos anos, precedida de um debate sobre limites entre o direito militante e a defesa da democracia – que, muitas vezes, permeou ações do STF e de outras Cortes superiores durante o governo de Jair Bolsonaro.
“A Corte tem sido crescentemente instada a trabalhar como se fosse parte do sistema político. Qual o risco? Quando ela joga esse jogo, ela perde a sua referência e passa a ser tratada não mais como ator jurídico, mas como ator político”, observou o professor de Direito Público da USP Floriano de Azevedo Marques. Ele e outros analistas foram ouvidos antes dos atos radicais de domingo.
Essa foi a armadilha na qual o Judiciário se viu em 2022 diante de uma eleição polarizada e, principalmente, segundo juristas, em razão do comportamento de Bolsonaro. “Isso tem um custo. O Supremo vai para a primeira página de jornal e seus membros passam a ser tratados como atores políticos”, disse Azevedo Marques.
Os contornos dessa história acentuaram-se em 2018, com a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial. Ainda candidato, ele anunciou a ideia de aumentar em dez o número de ministros do Supremo. Queria obter maioria na Corte. Eleito, convidou o então juiz Sérgio Moro para ser seu ministro da Justiça. O homem da Lava Jato havia posto na cadeia o petista e atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e avançado sobre a cúpula do PSDB. Em 2019, procuradores da operação passaram a apurar denúncias contra ministros do STF.
Fake
Foi naquele ano que o presidente da Corte, Dias Toffoli, fez a portaria designando Moraes para relatar o inquérito 4781, o das “fake news”. Toffoli não mencionou episódios ou quem seria investigado. Tudo que a portaria aponta para justificar o inquérito são “notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças e infrações (…) que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Primeiro se pensou que o alvo seriam os procuradores que estavam usando as redes sociais para criticar o STF. Mas logo Moraes mandou tirar do ar uma reportagem da revista Crusoé com menção a Toffoli em e-mails da Odebrecht. A reportagem nada tinha de falso. O ministro recuou. Nos anos seguintes, avançou sobre bolsonaristas, que foram alvo de buscas e prisões e tiveram contas nas redes sociais bloqueadas.
Neste mesmo período, entre 2019 e 2022, foram abertos outros inquéritos para investigar milícias digitais e atos antidemocráticos. Todos sob relatoria de Moraes, que atingiram empresários e parlamentares bolsonaristas. Eles permanecem até hoje sendo investigados. Após quatro anos de investidas, a grande maioria dos alvos não foi denunciada nem indiciada pela Polícia Federal.
Em julgamento do plenário do STF, em junho de 2020, os ministros decidiram declarar a legalidade e a constitucionalidade do inquérito das fake news. O placar foi de dez votos a um. Garantida essa retaguarda, pouco a pouco Moraes assumiu o papel que o levou a embates com Bolsonaro. Em meio a isso, o ministro assumiu a presidência do TSE com a missão de conduzir as eleições nas quais Bolsonaro buscava a reeleição.
Em agosto, ele deflagrou buscas e impôs bloqueios de contas bancárias de empresários participantes de um grupo de WhatsApp no qual insuflavam um golpe de Estado caso Lula fosse eleito. Depois, editou resolução que ampliou os poderes da Corte para retirar notícias falsas do ar, o que pôs o TSE no centro de um debate sobre excessos no afã de combater as fake news.
Militante
No mundo jurídico, a atuação de Moraes tem sido justificada com base na teoria da “democracia militante”, conceito criado pelo alemão Karl Loewenstein. Para ele, a democracia nos anos 1920 e 1930 alimentou a tolerância e a liberdade que permitiram aos fascistas competirem com os democráticos e chegarem ao poder por não excluir “do jogo os que negam a própria existência das regras”.
Esse papel militante do STF levou os entrevistados a apontar a necessidade de um “freio de arrumação” no País. Entre eles está o procurador regional da República Bruno Calabrich. “A concentração das funções de juiz, investigador e até de vítima em uma só pessoa é uma clara violação ao sistema processual penal brasileiro. Entretanto, o colegiado do STF chancelou a instauração e a condução desses inquéritos.”
Outro crítico dos inquéritos é o desembargador aposentado Wálter Maierovitch. “Inquérito é para apurar autoria e materialidade de fato ocorrido. Agora tudo o que é ato antidemocrático vai para o inquérito do Moraes? Moraes é um juiz de exceção.”
O defensor público Gustavo Ribeiro disse ter medo de que “excessos considerados válidos em desfavor de grandes corruptos e pessoas poderosas que, por alguma razão, colocaram em risco o estado democrático de direito, acabem sendo invocados contra os mais pobres, o que costuma acontecer.”
Para Azevedo Marques, o STF deve ter agora um compromisso com a volta à normalidade. Ele descreve como foram esses “tempos de exceção”. “A PGR não agia, o Executivo desafiava permanentemente o Judiciário e as regras do estado democrático de direito e, na eleição, alguns atores assumida e previamente se dispunham a negar o jogo eleitoral, cuja lógica é quem tiver mais voto leva.” E o Brasil não tinha instrumentos para enfrentar o golpismo.
“Assim, o Judiciário, pela primeira vez na história republicana, se armou com o instrumento do inquérito judicial, que não existe em país de separação dos três Poderes, como o nosso”, avaliou Maierovitch. Para ele, foi a falha do sistema de freios e contrapesos da República que levou à criação desse “instrumento de autodefesa”. “A Câmara não fez o impeachment do presidente – e eu fui signatário de dois pedidos – e o procurador-geral da República não agiu.” Para ele, isso levou Moraes a impedir que o golpismo bolsonarista prosperasse, salvando as eleições. “Mas salvou na legalidade e na legitimidade? No meu modo de ver, não. Assisti a tudo sabendo que o Supremo agiu fora da legalidade e da legitimidade. Mas eu coloco: graças a Deus.”
Na avaliação de Maierovitch, após os atos de domingo, a posição de Moraes ficou fortalecida. “Ele agiu bem, pois atuou após ser provocado pela AGU e com base na Constituição.”
Lava Jato
Os entrevistados fazem um paralelo entre a situação atual e a da Operação Lava Jato. Ninguém discute que os objetivos de uma ou de outra eram legítimos: combater a corrupção e manter a democracia. Em ambos os casos, a maioria admite que houve excessos. Como na Lava Jato, agora seria a vez de a Corte fazer o freio de arrumação na defesa democrática.
Para Calabrich, a defesa da democracia é inegociável e deve ser feita de forma intransigente, rigorosa e eficiente. “Exatamente por isso, não podemos transigir com regras que são próprias do estado democrático de direito.”
Para enfrentar as críticas à atuação da Corte, os ministros do STF decidiram limitar o poder das decisões monocráticas, impondo a revisão pelas turmas ou pelo plenário das decisões mais urgentes, o que inclui as medidas cautelares em inquéritos, como prisões. A Corte, que começou 2022 com 24.082 casos, 8% a menos do que em 1.º de janeiro de 2021, também limitou o tempo de vista processual em 90 dias, obrigando a liberação dos autos caso o ministro não se manifeste nesse período.
A professora de Direito Constitucional da UFMG Juliana Cesário Alvim Gomes disse que fica clara nessa decisão uma tentativa de o STF falar de maneira mais colegiada por meio da redução dos poderes individuais dos ministros. Ribeiro lembra que as decisões monocráticas não permitem sustentação oral, o debate entre ministros e a entrega de memoriais, o que limita a defesa.
Calabrich afirmou que a nova regra vai evitar a eternização das decisões liminares em casos criminais graves. “Seja para preservar os direitos do investigado, seja para preservar o resultado útil de uma investigação, é importante que o pleno julgue, compartilhando a responsabilidade entre os ministros.”
As mudanças, no entanto, não seriam suficientes para enfrentar as ameaças à democracia. Para Azevedo Marques, é necessário mudar o marco civil da internet, pois “o ataque antidemocrático se construiu” em torno das redes sociais – basta ver como se deu a convocação para as ações golpistas de domingo. A mudança na lei evitaria que o Judiciário tenha de agir como polícia.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.