21/03/2021 - 17:46
Um grupo de nove advogados entrou com habeas corpus coletivo no Supremo Tribunal Federal pedindo um “salvo conduto” para impedir investigações e processos contra todas as pessoas que realizarem críticas à forma como o presidente tem conduzido a pandemia da covid-19, “inclusive por sua qualificação como ‘genocida'”. O grupo argumenta que “tal adjetivação se configura como exercício regular de direito de crítica política, decorrente do direito fundamental à liberdade de expressão e crítica”.
Segundo o habeas corpus, não há como caracterizar as manifestações como crimes contra a honra, previstos no Código Penal, e tampouco enquadrá-las na Lei de Segurança Nacional. Ambos as fundamentações foram utilizadas em diferentes pedidos de investigação contra críticos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A petição enviada ao STF na quinta, 18, e protocolada neste sábado, 20, é assinada pelos advogados Felippe Mendonça, Roberto Montanari Custódio, Leonardo David Quintiliano, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Rafael Leone Guarilha Colli, Jucemar da Silva Morais, Rafael Khalil Coltro, Djefferson Amadeus de Souza e Erica Acosta Plak. A Defensoria Pública da União também foi ao Supremo contra os inquéritos contra críticos do presidente.
Ao Supremo, os advogados ressaltam que a “ilicitude” de um discurso depende sempre do seu contexto. Para eles, o uso do termo genocida para qualificar o presidente não implica em uma intenção específica de ofender a honra (animus caluniandi ou animus difamandi vel injuriandi) uma vez que é usado no contexto de uma crítica política a ações políticas do presidente – “que as pessoas entendam ter efeitos genocidas, bem como que quem as pratica ciente da enorme potencialidade de tais efeitos torna-se genocida por responsável por um número de mortes de níveis genocidas”.
“Trata-se de uma legítima compreensão da postura negacionista e anticientífica do Sr. Presidente da República na sua desastrosa condução da pandemia do Covid-19, que, portanto, enquadra-se dentro do direito fundamental de oposição e crítica política ao Chefe de Governo e de Estado”, segue o HC.
O habeas corpus também lembra que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é a de que crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e do próprio Código Penal devem ser interpretados de forma a não criminalizar a oposição lícita ao governo.
Os advogados dizem questionar “condutas manifestamente arbitrárias” do ministro da Justiça, André Mendonça, que tem requisitado a instauração de inquéritos contra “toda e qualquer pessoa que faça qualquer crítica” a Bolsonaro. O grupo considera que tal conduta de Mendonça – que já é alvo de representação na procuradoria-geral da República e queixa-crime no Supremo Tribunal Federal – “merece ser vista como caracterizadora, em tese, de constrangimento ilegal das vítimas de tal postura totalitária, e que pode configurar, em tese, o crime de abuso de autoridade”.
Como exemplo de tais investigações, os advogados citam o caso do sociólogo Tiago Costa Rodrigues e do empresário Roberval Ferreira de Jesus por suposto crime contra a honra do presidente em razão de outdoors que comparavam Bolsonaro a um “pequi roído”. Além disso, o habeas corpus lembra do advogado Marcelo Feller, alvo de apuração aberta a pedido do ministro da Justiça, André Mendonça, com base na LSN.
O caso Marcelo Feller
No habeas corpus, o caso do advogado Marcelo Feller ganhou um capítulo à parte, em razão de ter sido arquivado pelo STJ por falta de justa causa. O criminalista de 34 anos foi alvo de investigação, a mando de Mendonça, por declarações feitas durante uma das edições do quadro “O Grande Debate”, da emissora CNN, por onde teve uma breve passagem.
Na ocasião, Marcelo Feller citou o estudo que concluiu que atos e discursos de Bolsonaro contra o isolamento social como estratégia de combate à pandemia podem estar por trás de pelo menos 10% dos casos e mesmo de mortes pela covid-19 registrados no Brasil. Durante o debate, usou termos como “genocida, politicamente falando”, “criminoso” e “omisso” para se referir ao presidente.
O vice-presidente STJ, ministro Jorge Mussi, acabou suspendendo o interrogatório do advogado indicando que não havia, no comentário, “lesão real ou potencial ao Estado de Direito, mas tão somente severa crítica à postura do presidente frente à pandemia da covid-19”.
No habeas corpus ao Supremo, os advogados reproduziram extenso trecho do parecer da Procuradoria da República no Distrito Federal pelo arquivamento do caso de Feller. Um dos excertos frisa que, no caso de Feller, ‘não havia de se falar sequer em tese em ofensa à honra subjetiva do presidente da República, mas tão somente de crítica ao comportamento (aliás, amplamente questionado) deste em relação à pandemia causada pelo novo coronavírus’.
Na manifestação, o procurador João Gabriel Morais de Queiroz observou ainda que a LSN não pode ser usada para “constranger ou perseguir” opositores políticos, por mais “ásperas” que sejam suas críticas. “Apesar dos arroubos antidemocráticos e da proliferação de defensores da ditadura observada nesses últimos anos, (ainda) vivemos, no Brasil, um sistema democrático de direito e, portanto, é com base nesse contexto democrático que a LSN deve ser interpretada e aplicada”, pontua o procurador.
Gilmar Mendes
O habeas corpus ainda fez referência ao voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento realizado em abril de 2020, que reconheceu que Estados e municípios têm autonomia para impor medidas de isolamento social. Na ocasião, Gilmar afirmou que o presidente não “dispõe do poder para, eventualmente, exercer uma política pública de caráter genocida”.
Nessa linha, os advogados que acionaram o Supremo argumentam: “Cidadãs e cidadãos, da mesma forma que o Ministro Gilmar Mendes no citado julgamento, tem o legítimo direito de qualificar uma política pública como ‘genocida’, bem como qualificar como ‘genocida’ um Presidente da República que deliberadamente promove políticas geradoras de mortes em níveis genocidas. Afinal, a postura do Sr. Presidente da República notoriamente gera um número de mortes que atinge níveis recordes dia após dia, o que tem gerado nefasto recrudescimento da perseguição penal de quem ‘ousa’ criticá-lo”.
O próprio Gilmar chegou a ser alvo de pedido de investigação baseado na Lei de Segurança Nacional por dizer, em julho do ano passado, que o Exército está se associando a um ‘genocídio’, ao se referir à crise sanitária instalada no País em meio à pandemia do novo coronavírus. O ministro é relator de duas ações que questionam a LSN.