30/11/2021 - 16:29
A revolução tecnológica demorou a chegar, mas finalmente começou a transformar a vida do pequeno agricultor familiar brasileiro. Com o surgimento das foodtechs, aliado ao aumento da confiança na compra on-line de alimentos e na maior busca por comidas saudáveis por parte do consumidor, o produtor de frutas, legumes e verduras (FLV) orgânicos começa a operar em um novo modelo de negócio: deixa de depender dos intermediários — do mercadinho do bairro aos hipermercados — e passa a se conectar diretamente ao consumidor final via e-commerce. Os benefícios são muitos, entre eles uma remuneração mais justa, fruto do acesso direto a um mercado que, segundo a Associação de Promoção da Produção Orgânica e Sustentável (Organis), movimentou R$ 5,8 bilhões em 2021, 30% a mais do que o ano anterior, e que não para de crescer.
O setor de orgânicos deve movimentar R$ 5,8 bilhões em receita até o fim do ano
A LivUp é uma das foodtechs que está tornando essa aproximação possível. Fundada em 2016, a startup iniciou a trajetória comercializando comidas saudáveis congeladas por meio de site e aplicativo próprios. Com o interesse da demanda, ampliou o portfólio e passou a oferecer o serviço de vendas e entregas de orgânicos frescos direto na casa do cliente. Um sistema que trouxe grandes desafios já que, segundo Pedro Martins, engenheiro de produção e gerente de Sustentabilidade e Suprimentos da LivUp, a cadeia tradicional é 100% analógica e também pouco integrada. “Até agora o agricultor plantava sem saber para quem iria vender e quanto iria receber”, afirmou.
NOVO PARADIGMA Com a tecnologia e uso de dados trazidos pelas startups isso começou a mudar. O planejamento agrícola e financeiro das famílias também ficou mais organizado. Neste novo modelo, contratos fixos de parte ou do total da produção são firmados e relacionamentos de longo prazo, estabelecidos. Isso permite a LivUps oferecer crédito antecipado ao produtor. A cada início de mês, cerca de 10% a 15% do faturamento mensal projetado são depositados na conta da propriedade rural. Isso, segundo o próprio executivo, dá fôlego a comunidades agrícolas, como a de quilombolas Cafundó — formada por 30 famílias e 104 habitantes, no município de Salto de Pirapora (SP). “Foi na agricultura que acharam uma forma de se firmarem, inclusive, como comunidade”, afirmou. Hoje, a foodtech trabalha com 40 famílias que acumulam renda média mensal em torno de R$ 15 mil.
Outras startups como a Raízs, empresa que inaugurou o sistema de assinaturas de cestas de FLV orgânicos no País, têm compreendido cada vez mais a dinâmica do mercado e também deste consumidor. Esse conhecimento está servindo para ampliar o portfólio de serviços oferecidos pela foodtech nas duas pontas.
E-commerce de frutas, verduras e legumes revoluciona modelo de negócio antes analógico
No campo, como a dificuldade de acesso ao crédito era um grande desafio, a empresa passou a atuar como facilitadora de seus fornecedores junto às instituições financeiras, facilitando a aquisição de linhas de financiamentos. Já para a ponta final, a foodtech, que começou com um modelo em que o cliente era surpreendido com o tipo mercadoria que receberia em casa — uma vez que a oferta dependia da colheita do dia —, passou a oferecer como alternativa uma feira em que é possível escolher exatamente os orgânicos de interesse, além de itens de mercearia. Hoje, o site oferece 2 mil produtos de 840 produtores distribuídos pelo Brasil. Como a demanda não para, a empresa está em fase de captação para continuar a expandir.
DIGITALIZAÇÃO Estudo realizado pela McKinsey & Company em parceria com o Insper, no início deste ano, mostrou que já no começo de 2020 36% dos produtores rurais brasileiros usavam os meios digitais para suas transações, enquanto os americanos e europeus possuíam em média 24% e 15% de seus agricultores digitalizados, respectivamente. Neste ano, esse número aumentou para 46% no Brasil, contra 22% da Europa e 31% dos Estados Unidos.
Esse crescimento da digitalização rural está atraindo mais empresas. A Shopper, inicialmente uma espécie de supermercados de entrega programada de alimentos secos, de higiene e limpeza, passou a oferecer feira semanal de frescos. Já a DuLocal oferece marmitas orgânicas e tem como valor só comprar ingredientes de pequenos produtores locais. O movimento gera um ciclo virtuoso que não para nas foodtechs.
O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) e a Embrapa, com apoio dos ministérios da Comunicação e Agricultura, lançou o projeto SemeAr. A plataforma digital acelera o processo de adoção de tecnologias pelos pequenos e médios produtores. De acordo com Fabrício Lira Figueiredo, gerente de desenvolvimento de negócios em Agronegócio Inteligente do CPQD, o grande desafio é quebrar velhos paradigmas. “Existe sempre muita resistência ao novo, principalmente no ambiente agro, que é caracterizado pela adoção de técnicas de longa data muito transmitidas pela experiência”, afirmou.
Mas ao verem na prática os benefícios, a mudança acontece. Antes da explosão do e-commerce, o principal canal de venda da agricultura familiar era o grande distribuidor. Um um modelo de negócio que achatava as margens do campo. “O produto chega na ponta, mas o porcentual pago ao produtor é pequeno, ficando entre 10% e 15% do preço da gôndola”, disse Lira. Agora, a tecnologia está tornando o sonho da desintermediação possível permitindo que agricultores tenham acesso direto também a marketplaces digitais como a Baskets.
MARKETPLACES Kim Machlup, CEO e criadora da Baskets, conta que, como consumidora, adquiria os produtos que queria em feiras de orgânicos. Mas aí veio a pandemia, e na hora de mudar a compra do ambiente fisíco para o on-line veio o suplício. “Cada produtor tinha uma forma de se comunicar, com entregas em dias diferentes e, além disso, eu pagava um frete para cada produto. No fim, me vi fazendo uma gestão de produtores”, afirmou. Foi assim que a empresária criou a Baskets, permitindo que os próprios produtores anunciem suas mercadorias e que consumidores os adquiram com mais facilidade.
Este e-commerce, porém, é diferente dos demais. O foco não é em frutas, legumes e verduras e sim em pequenos produtores que beneficiam commodities do campo transformando-as em geleias, embutidos, conservas e vinhos. A dificuldade que enfrentam, porém, é a mesma do agricultor: levar a mercadoria ao cliente final e receberem remuneração justa pelo trabalho realizado. Com o acesso ao marketplace todo o fluxo ficou mais direto e organizado.
O surgimento de novas foodtechs e marketplaces de alimentos interessados na agricultura familiar, não deixam dúvidas de que a tecnologia chegou para permitir o justo: que os pequenos ganhem os espaços que merecem nas gôndolas ainda que elas sejam visíveis somente pelas telas dos computadores e celulares do consumidor brasileiro.