Antes de desaguar no mar, o Rio Amazonas banha inúmeras comunidades de várzea do Amapá e da Ilha do Marajó, no Pará. Casas esparsas sobre palafitas espalham-se entre o verde da paisagem florestal, mas, na Ilha das Cinzas, uma construção se destaca: é a nova agroindústria, onde frutos amazônicos serão beneficiados, antes de serem vendidos para a fabricação de cosméticos. Com o incremento de valor agregado, estima-se que a renda das famílias extrativistas aumente em cerca de 60%.

Durante a cerimônia de inauguração das instalações, no sábado passado (24), os irmãos Josi e Francisco Malheiros faziam questão de receber pessoalmente os convidados que chegavam de barco, com um sorriso largo nos lábios e, por vezes, os olhos marejados de emoção. Ela, com apenas 16 anos, foi uma das fundadoras da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas (Ataic), no ano 2000. Ele, que tinha apenas 11 anos naquela época, hoje é o atual presidente da organização que vai gerenciar a agroindústria.

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Quando a Ataic foi fundada, a comunidade trabalhava principalmente com a pesca de camarão, e a associação chegou a receber diversos prêmios pela criação de uma tecnologia social de manejo do crustáceo. Pouco tempo depois, veio a ideia de investir na diversificação produtiva, primeiro com a colheita de açaí, para fins alimentícios, e depois com os frutos do patauá e as sementes de ucuuba e murumuru, utilizadas em cosméticos.

Josi Malheiros defende a necessidade de se pensar em mais programas de desenvolvimento para as comunidades de várzea – Foto: Anderson Águia/Natura/WEG

“Na floresta tem gente”, lembra Josi. “O ambiente de várzea nunca foi considerado nas políticas públicas para desenvolvimento da Amazônia. A gente precisa ter programas de desenvolvimento de fato, considerando esse ambiente que está aqui e que as populações precisam sobreviver e avançar”, complementa.

Assim, a Ilha das Cinzas se tornou um assentamento extrativista, e em 2015, a partir de uma parceria com a empresa Natura, o manejo de bioativos para a produção de cosméticos se tornou a principal atividade da Ataic. De 5 toneladas colhidas no primeiro ano, as remessas aumentaram para cerca de 200 toneladas anuais de murumuru e 100 de ucuuba, além de 120 toneladas de patauá recolhidas na última temporada.

Além de contribuir para o desenvolvimento da ilha, a partir da geração de renda para as famílias extrativistas, a associação também investiu em melhorias que trouxeram benefícios coletivos, como tecnologias para tratamento de água e esgoto e a instalação de sistemas de energia solar, substituindo os poluentes geradores a diesel utilizados para alguns equipamentos e levando a energia elétrica para o dia a dia da comunidade.

“Antes as famílias guardavam alimento com sal. Hoje tem um freezer que pode guardar por mais dias. O ganho de saúde que essa família teve, sabe? As mulheres tinham que carregar por 20 metros um barril com água e agora tem uma bomba para puxar… As famílias têm uma máquina de lavar roupa agora, têm batedeira de açaí, esses itens necessários para ter, minimamente, condições melhores de vida”, conta Francisco Malheiros.

A atividade também permite que as comunidades se desenvolvam sem impactar a floresta. “A ucuuba é uma espécie madeireira, ameaçada também de extinção, com uma exploração intensa na região para comércio de cabo de vassoura. E aí o pessoal parou de vender para atravessador, ganhando um valor irrisório para madeira virar cabo de vassoura, e teve ampliação de renda, vendendo as sementes para virarem o óleo”, exemplifica Josi.

Hoje, a Ataic trabalha com quase 450 famílias em diversas localidades nos municípios de Gurupá, Afuá, Chaves, Breves e Anajás, na Ilha do Marajó, e no município de Mazagão, no Amapá. E Francisco espera que essa rede cresça ainda mais, a partir da agroindústria.

“Quem sabe a gente até dobra o número de famílias atendidas nos próximos anos… É mais renda sendo gerada, é mais qualidade de vida sendo implantada no território. Esse é o sonho.”

Ineditismo

Além de promover o incremento de renda para as famílias da Ataic, a agroindústria da Ilha das Cinzas representa dois marcos para a região: é a primeira instalação do tipo construída em uma área de várzea, e também a primeira operada totalmente com energia limpa, proveniente de um sistema solar com armazenamento em baterias, conhecido como Bess, sigla para Battery Energy Storage System, ou Sistema de Armazenamento de Energia por Baterias, em português.

Agroindústria na Ilha de Marajó pode aumentar renda das famílias extrativistas em cerca de 60% – Foto: Anderson Águia/Natura/WEG

As instalações foram construídas pela Ataic em parceria com três empresas, que investiram em caráter de doação. A Natura foi responsável pela articulação e pelo suporte técnico e operacional, a Weg doou o sistema de energia, e a W-energy instalou os equipamentos fotovoltaicos. Esse sistema alimenta o maquinário que transforma as sementes e os frutos em óleos e manteigas, vendidos por um preço superior ao das matérias-primas.

“É a 20ª agroindústria que a gente inaugura com as comunidades, dentro de um plano estruturado de industrialização descentralizada. O protagonismo da Amazônia para a gente é bastante importante. Nós temos várias metas públicas, uma delas é proteger 3 milhões de hectares, o que a gente faz no dia a dia em relação com as comunidades”, diz a diretora de Sustentabilidade da Natura, Ângela Pinhati.

A localização à beira do rio impõe desafios específicos, já que só é possível chegar à comunidade de barco. Além disso, não há como se conectar à rede de energia tradicional. As placas solares e baterias, por exemplo, foram construídas em Santa Catarina, transportadas de barco até Belém, movidas para um segundo barco, para o transporte até Macapá, e depois para um terceiro que conseguisse chegar à Ilha das Cinzas. Para o percurso final, do pequeno cais até os galpões, os equipamentos foram colocados sobre toras de madeira, empurradas com o máximo de cuidado para não causar nenhum dano.

A indústria será alimentada primariamente pela energia produzida nas placas solares, e, em dias de menor incidência, as baterias – também abastecidas pelo sol – entram em operação. Mesmo em um cenário bastante improvável de ausência total de luz solar, o Bess conseguiria manter a indústria operando por cerca de oito horas. De acordo com o diretor de Sustentabilidade e Relações Institucionais da Weg, Daniel Godinho, é um projeto inovador, já que, em outras plantas industriais, o sistema de energia solar combinado com baterias é utilizado como complemento ou retaguarda para a fonte de abastecimento principal.

“Esse é um projeto diferente e especial, porque aqui ele toca a indústria. Nós temos aqui dois módulos de energia solar: se falhar um, a indústria consegue operar com a outra. E seis módulos de bateria. Não tendo energia solar suficiente, ele consome energia do Bess. Somente se esgotar a energia renovável, o que é muito improvável, é que vai acionar o gerador a diesel. A gente colocou várias camadas para que venha a ser uma energia limpa de verdade”, explica Godinho.

Francisco Malheiros preside a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas (Ataic), que vai gerenciar a agroindústria – Foto: Anderson Águia/Natura/WEG

Modelo

“Vocês podem levar daqui um modelo não só de agroindústria, mas um modelo de residência, de moradia… Um modelo de bem-estar das famílias, nesse e em qualquer outro território isolado”, incentivou o presidente da Ataic, Francisco Malheiros, durante a inauguração.

“Quando você faz uma fábrica utilizando tecnologias nacionais para processar produtos da socioeconomia, gerando qualidade de vida no interior do Brasil e utilizando energia limpa, certamente tem um efeito demonstrativo muito grande para outras cadeias produtivas em outras regiões isoladas da Amazônia”, concorda o secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Rodrigo Rollemberg, que participou da cerimônia.

De acordo com o secretário, no final de 2023, o ministério assinou um convênio com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para a elaboração de um catálogo com todas as máquinas e equipamentos utilizados para aumentar a eficiência e a produção nas cadeias produtivas do babaçu, cupuaçu, açaí e castanha-do-brasil. Em seguida, foi feito um projeto com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que vai enviar agentes locais de inovação cooperativa a cerca de 50 cooperativas nos estados do Pará, Amapá, Acre, de Rondônia e do Maranhão, para mapear as necessidades das comunidades que atuam nessas quatro cadeias produtivas.

“E já apresentamos ao Fundo Amazônia um projeto de R$ 104 milhões para que o Sebrae possa receber esses recursos e comprar esses equipamentos para distribuir para as cooperativas e fazer também um trabalho de capacitação”, complementa Rollemberg. O objetivo é que as informações levantadas sobre essas quatro cadeias produtivas possam ser reproduzidas em projetos semelhantes, envolvendo outros bioativos. 

*A repórter viajou a convite da Natura