15/09/2021 - 22:18
Com centenas de indígenas ainda acampados em Brasília à espera da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes pediu a suspensão do julgamento sobre a tese de marco temporal para demarcação das terras indígenas por tempo indeterminado. O placar está empatado em 1 a 1.
Durante a sessão no Supremo, o presidente Jair Bolsonaro voltou a apelar aos ministros para que decidam pela constitucionalidade da tese. O chefe do Executivo tem repetido o discurso de que a derrubada do marco temporal vai representar um ‘duro golpe ao agronegócio’, com repercussões ‘quase catastróficas’, que levarão à disparada no preço dos alimentos.
“A gente pede a Deus que nosso Supremo Tribunal Federal não altere o Marco temporal”, clamou Bolsonaro, em evento sobre os avanços no programa federal de habitação, o Casa Verde e Amarela. “A cada cinco pratos de comida consumidos no mundo, um vem do Brasil, e se esse novo marco temporal passar a existir, caso o Supremo assim entenda, será um duro golpe no nosso agronegócio, com repercussões internas quase catastróficas, mas também lá para fora”.
O pedido de suspensão do julgamento, apresentado por Moraes, representa vitória do governo federal na disputa que se arrastou por quase um mês. O engavetamento da ação pode deixar o futuro das demarcações de terras indígenas nas mãos do Congresso, onde tramita o Projeto Lei 490, de 2007, com amplo apoio da bancada ruralista.
A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que conta com mais de 200 deputados, pressiona o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), a pautar o projeto no plenário da Casa. O texto estabelece a fixação do mesmo marco temporal, além de abrir espaço em terras indígenas para exploração de projetos do agronegócio, mineração e demais empreendimentos de infraestrutura.
A tese do marco temporal, defendida por ruralistas e empresários ligados ao agronegócio, funciona como referencial de tempo para contestações na Justiça ao sugerir que uma terra só pode ser demarcada se ficar comprovado que os indígenas estavam sob posse tradicional do território na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. De acordo com a tese, na ausência de provas documentais de que a área pertence historicamente aos povos originários, a demarcação pode ser negada e os ocupantes da terra poderiam ser submetidos a processos de despejo à força.
Dados monitorados pelo Instituto Socioambiental (ISA), com base em publicações feitas no Diário Oficial da União, indicam que os ministros do STF têm nas mãos a decisão sobre o futuro de 303 demarcações de terras indígenas em andamento no País, um direito fundamental dos povos originários, previsto na Constituição Federal.
O Supremo dedicou seis sessões consecutivas exclusivamente ao marco temporal. Ao pedir a suspensão do julgamento, Moraes justificou que a tese defendida pelo ministro Kassio Nunes Marques em seu voto, divergente com o do relator Edson Fachin, abriu margem para interpretações diversas que precisam ser analisadas de forma criteriosa.
Antes da interrupção, Nunes Marques votou para autorizar a aplicação da tese. Ele disse que o entendimento tem sido reiterado pela Corte nos últimos anos e que sua derrubada deve facilitar o crescimento de conflitos fundiários.
“A revisão da jurisprudência deste tribunal representaria grave risco à segurança jurídica e retorno à situação de conflito fundiário”, afirmou. “O conceito de posse é um conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático-histórico da atualidade dessa posse”, acrescentou citando decisão do ex-ministro Nelson Jobim.
Indicado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro, Nunes Marques adotou posicionamento semelhante ao da Advocacia-Geral da União (AGU). A pasta também argumentou que a falta de uma data para estabelecer as demarcações pode gerar insegurança jurídica e ‘atentar contra a paz social’.
Em seu voto, o ministro disse ainda que o reconhecimento de pedidos de posse posteriores à data de promulgação da Constituição ‘implicaria o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário’.
“A propriedade privada é elemento fundamental das sociedades capitalistas, como é a brasileira atual. A insegurança sobre esse direito, em especial no que diz respeito a bens e móveis, é sempre causa de grande desassossego e de retração de investimentos”, declarou.
Até o momento, além de Nunes Marques, apenas o ministro Edson Fachin, relator do caso, chegou a ler o voto e se manifestou contra a tese na semana passada. Fachin reiterou o voto dado no plenário virtual, antes do julgamento ser transferido para a sessão por videoconferência, e defendeu que a manutenção do marco temporal pode configurar ‘progressivo etnocídio’ – ou seja, a aniquilação gradual das formas de reprodução física e cultural dos indígenas por meio da terra. Na sessão anterior, o ministro foi enfático ao resumir que ‘a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas’. Ele disse que a Constituição de 1988 foi um ‘marco relevante’ na garantia do direito dos indígenas à terra, mas não o primeiro.
“Os direitos das comunidades indígenas, à luz da Constituição, constituem direitos fundamentais que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna dos índios”, afirmou. “A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
O parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentado no último dia 2, também foi contra o marco temporal. O chefe do Ministério Público Federal lembrou que a Constituição registrou a importância do reconhecimento dos indígenas como os primeiros ocupantes das terras e que o status garantido constitucionalmente a eles dispensa até mesmo a necessidade da demarcação – que, em sua avaliação, funciona mais como um instrumento jurídico para facilitar a reivindicação das terras em eventuais conflitos de posse.
A interrupção da análise do caso frustrou milhares de indígenas que aguardavam a decisão dos ministros. A Articulação Nacional dos Povos Indígenas (Apib) chegou a contar com 6 mil pessoas, oriundas das aldeias mais longínquas do País, acampadas próximas à Esplanada dos Ministérios para pressionar os ministros do Supremo a votarem contra o marco temporal. O esforço de locomoção dá dimensão da importância do resultado.
O julgamento tem como pano de fundo uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng em nome da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang. O plenário do Supremo analisou o caso em caráter de repercussão geral, portanto, a decisão que for tomada passará a servir de jurisprudência definitiva sobre o tema. A morosidade do julgamento, que contou com 39 sustentações orais antes do início da votação, fez com que milhares de indígenas que aguardavam desde o dia 22 de agosto o resultado, no acampamento ‘Luta Pela Vida’, fossem embora de Brasília sem ver o resultado da mobilização.