09/11/2020 - 22:11
Se não bastasse o apagão de energia e o desligamento das bombas de água, a casa do vendedor de açaí José Luiz Furtado da Silva, de 46 anos, foi tomada por lama e terra. Uma chuva inundou, semana passada, a casa na Baixada do Ambrósio, periferia de Santana, a 20 quilômetros de Macapá. Com a solidariedade dos vizinhos, ele conseguiu água de um poço para abastecer a família, mas enfrenta um acúmulo de problemas.
A preocupação dele e da mulher, Adineide Nascimento, de 45 anos, é o peso da falta de energia na renda. Não podem limpar e bater frutos do açaizeiro. Refrigerá-los também é impossível. “Não conseguimos trabalhar. Dependo muito da energia. Tem de ter energia para esquentar água, ligar a batedeira e fazer o vinho do açaí”, diz ele. “Até vela falta no comércio.”
O governo federal disse neste domingo, 8, que 76% da energia foi retomada no Estado, que está sem energia desde terça-feira, 3, quando um incêndio afetou uma subestação de energia. A previsão para restabelecer completamente o serviço, no entanto, é no fim desta semana. Além disso, a Justiça Federal deu prazo até terça-feira, 9, para que o problema seja totalmente resolvido.
Enquanto as regiões de classe média de Macapá já haviam entrado no rodízio de abastecimento, o bairro seguia no escuro. O casal mora num conjunto com outras duas famílias e cria um dos filhos de uma sobrinha, desempregada. Na formação de Weverton, de 13 anos, outro impacto. As lições da escola estadual, que estavam sendo enviadas pelo WhatsApp por causa da pandemia, pararam de chegar. O ano letivo, já problemático, agora está interditado.
O apagão reforça contrastes sociais que já eram visíveis no Amapá. Diferentemente do que ocorre na periferia da capital e cidades vizinhas, as regiões centrais têm alguma estabilidade na retomada do serviço de energia, com rodízio. Classes média e alta sentem menos a crise. Na residência do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), no bairro do Trem, região central de Macapá, há um rodízio bem definido, com períodos de luz de 6 horas às 12 horas e de 18 horas à meia noite. Nas partes mais pobres, não há a mesma precisão.
Quem pode pagar correu para hotéis da capital em busca de energia e noites fresquinhas de sono. Placas de “não há vagas” estão pregadas nas portas. Com reduto eleitoral no Estado, Alcolumbre está em Macapá na estratégia de mostrar empenho para resolver a crise. A população direciona a revolta aos políticos locais, com críticas ao senador.
O impasse pode, ainda, atrapalhar planos do clã. Josiel Alcolumbre, irmão de Davi, que tenta se eleger prefeito pelo DEM. O bairro onde mora, o Central, de classe média, também tem rodízio definido. Os adversários não perderam a chance de desgastar os irmãos e o governador Waldez Goés (PDT), aliado do senador.
Ao ser abordado na calçada de sua casa pela reportagem, Josiel não quis comentar críticas dos moradores. O presidente do Senado, por sua vez, recorreu às redes sociais para rebater ataques. “Em vez de procurar culpados, nós estamos focados na solução, que é resolver o problema dos amapaenses”, escreveu, no sábado, 7.
Muitos internautas escreveram que Davi está mais preocupado em se reeleger para o comando da Casa. Sobre as críticas, a assessoria do parlamentar ressaltou apenas que os bairros da capital têm rodízio e que não há qualquer privilégio ao parlamentar. No domingo, ele ainda cobrou investigação e perda da concessão pela empresa responsável.
‘Estamos pedindo socorro. Estamos isolados’
Mesmo em Macapá, cidade que os Alcolumbre tentam o controle político, a situação segue dramática. “Estamos pedindo socorro. Estamos isolados”, desabafou Klebson Bosque, 42, após levar água para os pais, de 88 e 90 anos, que estão em apuros no Perpétuo Socorro. Moradores de bairros de população de baixa renda, como Pedrinhas, relataram que a noite de sábado para domingo foi mais uma vez no breu absoluto.
A energia chega a ser restabelecida em alguns momentos, mas não se mantém. O quadro varia de bairro a bairro. O temor de queima de eletrodomésticos demanda que sejam retirados das tomadas. Alguns relatam que a saída para não perder a pouca comida congelada que tinham é conservá-la em sal. O prejuízo, no entanto, é certo.
O peixeiro Waldemar da Trindade, de 63 anos, perdeu 300 quilos de pescado. A fábrica não consegue produzir gelo e os congeladores desligados não conservam a temperatura sob o calor de 33 graus. Exemplares de tucunarés, curimatãs, pirapitiningas, aracus e tambaquis que não foram recolhidos por pessoas que os quiseram de graça foram parar no lixo. “Coloque a mão aí. Os peixes estão quentes. Vou ter que jogar tudo fora.”
Comerciantes de peixes que trabalham no centro de Macapá compram o alimento fresco de pescadores para revendê-los. Como não acreditam na compreensão dos fornecedores, já calculam prejuízos. “Não estou conseguindo dormir. Teremos dívidas. Os vendedores vão nos cobrar. E não vemos solução. Paguei R$ 30 num balde de gelo sujo, veio até coxa de galinha dentro”, lamentou Sidney Nascimento Ramos, de 64 anos.
Em Santana, com quase 120 mil habitantes, a condição também é bem diferente da vivida pela elite política do Amapá. Recém-operado e com pressão alta, Dijair Gomes, de 43 anos, tentou algum conforto dormindo dentro do carro, com ar-condicionado ligado. “Nosso alimento estragou. Estamos sem água, sem energia e sem poder trabalhar.”
O calor forte é o mesmo ao qual o camarão que vende como ganha-pão estava exposto há cinco dias. Apesar do cheiro forte, ele acredita que o crustáceo pode aguentar ainda mais três fora das geladeiras. Enquanto era entrevistado pela equipe de reportagem, à luz de velas, a energia foi restabelecida. Nada que tenha motivado grande comemoração ou alívio. “Tomara que não vá embora, né? Já aconteceu isso outras duas vezes.”
Companhia de Eletricidade admite diferença entre regiões
A Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), responsável pela distribuição, afirma que não é operação fácil restabelecer um sistema que foi todo desligado e admite a diferença de tratamento entre regiões. Assinala, no entanto, que regiões são eleitas como prioritárias por conta da presença de unidades de saúde e hospitais.
A empresa tem uma planilha de rodízio para todo o Estado, mas atribui eventuais descumprimentos dos compromissos a irregularidade nas regiões periféricas. A companhia disse ainda que houve problema de rodízio em Santana por conta de um defeito numa substação, que teria sido resolvido.
O presidente da CEA, Marcos do Nascimento Pereira, diz que populares tentaram forçar um religamento irregularmente. “Está tendo uma atenção especial no Estado. O que pode ser feito está sendo feito. O consumidor tem que ficar tranquilo com relação a isso. E o consumidor tem que ter responsabilidade no uso da energia”, disse. “Não há privilégio de áreas. Toda área considerada prioritária tem explicação. E explicação está relacionada a serviços essenciais. Não há atendimento especial a área nenhuma.” Pereira assumiu a presidência da companhia na última terça-feira, 7, dia em que um raio atingiu um transformador da subestação que tem como responsável a empresa Gemini Energy.