15/02/2023 - 17:00
Um menino brinca no quintal. Para, olha as nuvens carregadas por trás da rocha que se ergue sobre as casas de telhado de zinco e corre chorando para o colo do pai. Aos 3 anos, mal fala, mas já sabe ler o céu. Uma mãe está no sofá abraçada aos filhos de 8 anos e 4 anos. Sem ter por onde, ela tenta acalmá-los. Estavam na porta do condomínio, prontos para sair, quando a chuva chegou. Um ano após o temporal que deixou 241 mortos em Petrópolis, a dor da maior tragédia já registrada na cidade se transformou em medo e, por vezes, pânico na rotina das crianças.
Naquele 15 de fevereiro, 44 delas morreram. A mais nova: um bebê de 17 dias. Para outras tantas que escaparam com vida, resta o trauma, sobretudo na primeira infância (0 a 6 anos). Este é o período em que o cérebro está se formando e uma explosão de sinapses começa a dar contornos ao que será o futuro adulto. É também o período em que a criança necessita de um ambiente seguro e acolhedor.
Na cidade 306 mil habitantes da região serrana do Rio, essa formação vem sendo interrompida e afetada abruptamente desastre após desastre. Deslizamentos, inundações, perdas materiais, deslocamentos forçados e mortes, às centenas. A contar apenas a partir do ano 2000, 443 pessoas foram vítimas das consequências de um clima cada vez mais extremo. Em 2022, no dia da tragédia anunciada, Petrópolis recebeu 530 mm de chuva em 24 horas. Isso é mais do que o dobro da média histórica.
Mas, por enquanto, o garoto Enzo sabe apenas que nuvens carregadas, vento forte, trovões e barrancos lhe metem medo. Com razão. Sua casa está a menos de 50 metros do principal ponto de desabamento no epicentro da tragédia petropolitana: o Morro da Oficina. “Quando chove meu filho começa a chorar. Se ele vê uma barreira, acha que vai cair e me diz: ’Sai daí, mamãe, vai cair tudo’. Se ele vê uma árvore balançando então…é tenso”, afirma Daiana Costa, de 32 anos, sua mãe. Nesta quarta-feira, quando o desastre que ela assistiu da janela do quarto completar um ano, Daiana levará Enzo ao posto de saúde. O menino será atendido por um clínico-geral. A mãe confia que dali saia com um encaminhamento para levá-lo a um psicólogo e um fonoaudiólogo também do SUS. “Desde o desastre, ele começou a gaguejar.”
Do outro lado da cidade, Aline Bernardes terá de se desdobrar para distrair a atenção dos filhos Mateus, de 8 anos, e Maria Eduarda, de 4 anos. A família teve de abandonar a casa em que vivia, no Alto da Serra, e se mudar para um apartamento. Graças ao plano de saúde do pai, as crianças são acompanhadas por um psicólogo. “Meu filho já tinha crises de ansiedade por causa da pandemia.
Quando veio a chuva foi pior, as crises foram mais intensas, passou a ter um ‘tic’ na mão e a acordar de madrugada pedindo socorro”, afirma a mãe. “Já a Maria Eduarda começou a ficar com medo de chuva. Hoje mesmo já estava na portaria quando começou a chover forte. Tive de voltar e ficar acalmando eles”, diz.
AUSÊNCIAS
Nos primeiros meses após o desastre, a procura por atendimento nos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), do SUS, explodiu até 569% em algumas unidades de Petrópolis. Em março de 2022, a saúde mental das pessoas atingidas direta ou indiretamente pelos alagamentos e deslizamentos na cidade foi tema de uma audiência pública no Senado. Entre as famílias, pouco pareceu ter adiantado. “Não, não fizeram nada, não para a gente aqui”, diz Cristiane Gross da Silva, de 49 anos, que perdeu nove pessoas da família na tragédia. “Aqui nós somos 93 mortos, 54 casas destruídas”, diz ela como a se colocar entre os mortos. A cada 15 dias, ela volta à antiga Servidão Frei Leão, onde morava.
Ali, em meio aos escombros, se tropeça em restos de brinquedos. Sobre a montanha de lama, o mato está crescendo. Mais algum tempo e tudo pode estar escondido pela vegetação. Até hoje, nenhuma obra foi feita. Qualquer um pode entrar, se arriscar entre as pedras e recolher a lembrança que quiser. Por que Cristiane segue voltando? “Aqui me sinto perto deles (dos entes perdidos)”, diz.
A ausência e a distância também afetaram a família de Isis Esteves da Silva Araújo, de 24 anos. Mãe de quatro meninas, Lara, Layla, Emily e Mellany, de 8, 7, 5 e 3 anos, ela viu a mais velha passar a ter um comportamento distinto desde a tragédia, quando abandonaram a casa em que viviam no meio da noite, com a água pelos joelhos. A família evita tocar no assunto, mas isso não impede que, por vezes, ela volte chorando da escola. “No quarto das meninas, caiu uma pedra em cima da cama das duas mais velhas. A minha cama dobrou no meio. A casa da minha irmã rolou sobre a nossa e levou metade”, afirma Isis. Com o aluguel social, se mudaram para uma casa em um bairro distante, mas Lara se mostra mais frágil emocionalmente, chorosa e com medo. A menina se queixa de saudade da casa antiga, dos amigos e primos que moravam ao redor. “Ela passou a ter autoestima baixa e a se emocionar com tudo.”
Psicóloga e acostumada a atender pessoas que passam por situações extremas em Petrópolis, Samira Younes Ibrahim vê nesses casos a continuidade da tragédia. Ao lado do também psicólogo Luiz Henrique de Sá, criou a Rede de Cuidados-RJ Psicologia em Emergências e Desastres, em 2011. “A primeira coisa a entender é que o desastre não acaba no ‘Dia D’, ele continua sendo vivido. Não dá para separar o que é objetivo do subjetivo”, diz. “O desastre de 2011 (que deixou mais de 900 mortos nas cidades da região Serrana do Rio) ainda continua para muita gente. Elas têm medo que isso volte a acontecer, outras perderam parentes, outras ainda têm algum familiar desaparecido.”
É o que vive Adalto Vieira da Silva, de 53 anos. Nesta quarta-feira, ele completa 365 dias sem conseguir localizar o corpo do filho Lucas, de 19 anos. Além dele, sua mulher e uma filha, de 5 anos, morreram no Morro da Oficina. “Aqui morreu muita, muita criança. Eu ainda consegui salvar duas que estavam no barro, dentro do que sobrou de um bar”, conta. “Não gosto nem que esses meninos me vejam porque a criança não precisa ver essa dor.”
Não olhar para ela, no entanto, não garante que desapareça. Homem de aperto de mão e voz firmes, Jamil Luminato, de 61 anos, sabe disso. Sua história com as chuvas e as tragédias começou em 1981, no Morro da Independência, quando resgatou um bebê dos escombros. Sua imagem, com a criança nua em seus braços, foi para a primeira página do Jornal do Brasil do dia seguinte. A fotografia, de Carlos Mesquita, ganhou o Prêmio Esso Regional daquele ano. A vida de Jamil, porém, pouco mudou em 32 anos. Em 2013, no mesmo morro, em mais uma chuva, Jamil perdeu a filha e dois netos, de 3 e 5 anos, em novo deslizamento de terra. Em 2018 foi a vez de seu irmão. “O que a gente faz? Segue em frente…mas não é fácil, nunca vai ser.”
A Prefeitura de Petrópolis afirma que concluiu 48 obras desde 2022, além de ter 41 em andamento e outras 40 em licitação. Os escombros no Morro da Oficina fazem parte desse último grupo.
(ESTA REPORTAGEM RECEBEU APOIO DO PROGRAMA EARLY CHILDHOOD REPORTING FELLOWSHIP: DESIGUALDADE E COVID-19 NO BRASIL E AMÉRICA LATINA, DO DART CENTER FOR JOURNALISM AND TRAUMA, DA COLUMBIA UNIVERSITY)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.