“Com a ajuda da cana-de-açúcar, o País poderia mudar o modelo de expansão das hidroelétricas”

José Goldemberg é físico, doutor pela Universidade de São Paulo e um dos principais cientistas brasileiros, especializado em produção de energia

A contribuição da cana-de-açúcar para a produção de energia no Brasil, seja por meio da produção de etanol, seja pela eletricidade cogerada com o bagaço da cana, já ultrapassou a contribuição das hidroelétricas para a matriz energética do País, representando 16% da oferta total. O Brasil é hoje referência mundial como produtor de biomassa sob diversas formas, com participação expressiva na produção total de energia. O etanol, por exemplo, já substitui boa parte da gasolina consumida no Brasil. Mas falta planejamento estratégico para que a bionergia avance.

Até meados do século 20, o Brasil era inteiramente dependente de importações de derivados de petróleo e de algumas empresas estrangeiras que produziam e distribuíam eletricidade, como a Light, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A “política energética” não era determinada pelo governo federal, mas pelos interesses comerciais dessas empresas. Contudo, as tarifas eram fixadas pelo governo e isso as desencorajavam a fazer os investimentos necessários para expandir a produção e distribuição.

A dificuldade em atender a população e a crescente industrialização do País, na década de 1950, levou à intervenção do Estado na área energética, com a criação da Petrobras e da Eletrobras. Com elas, surgiu um primeiro movimento de planejamento energético no País. No caso das empresas de eletricidade, a estratégia foi remunerá-las pelo custo de produção. No da Petrobras, sua criação levou ao descobrimento de petróleo na plataforma continental. Os aspectos negativos dessa política foram a ausência de competição e a criação de uma tecnoburocracia estatal.

Canavial: com a produção de biomassa, a cana-de-açúcar poderia gerar energia para atender a região Centro-Sul do País

A privatização de parte do sistema elétrico, a partir de 1994, no governo Fernando Henrique, aumentou a competição, mas fez com que a Eletrobras praticamente abandonasse o planejamento do sistema. O governo Lula manteve as privatizações e agravou o problema, ao fazer leilões nos quais todas as fontes de energia competiam em âmbito nacional. No setor elétrico, o melhor preço final ao consumidor passou a ser pedra de toque da atual administração federal. Na área do petróleo, os preços dos derivados permaneceram sob a administração do governo. Está aí a origem das atuais distorções. Em muitos empreendimentos, os vencedores nos leilões de energia não estão localizados onde há demanda. Por exemplo, a grande expansão da energia eólica ocorre nos Estados do Norte nos quais não há demanda.

Outro exemplo é o que ocorre com as hidroelétricas. O governo prossegue com macroempreendimentos, como as hidroelétricas de Santo Antônio, em Rondônia, e de Belo Monte, no Pará, a milhares de quilômetros de distância dos grandes centros consumidores, o que exige longas e caras linhas de transmissão. Enquanto isso, no Estado de São Paulo, a geração de eletricidade a partir do bagaço de cana enfrenta toda a série de obstáculos. Caso fosse bem aproveitado o potencial de geração nos canaviais da região Centro-Sul do Brasil, seria possível produzir energia tanto quanto Belo Monte.

As condições para que o País aumente a produção de cana-de-açúcar são excelentes e não se deveria perder as oportunidades. A cana ocupa hoje cerca de dez milhões de hectares de terra, área que poderia dobrar na próxima década. Isso não significa o abandono das hidroelétricas, mas com a ajuda da cana-de-açúcar o Brasil poderia mudar seu modelo de expansão, passando a um sistema de usinas menores e menos problemáticas do ponto de vista ambiental.