30/11/2021 - 16:29
Quando fizeram a primeira emissão pública de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) no País, em 2016, Martha de Sá, Fernanda Mello e Victoria de Sá já haviam identificado o potencial que o setor oferecia. Elas viram no título de renda fixa, que permite a captação de recursos no mercado, uma ferramenta importante para financiar o setor. No começo, no entanto, foi difícil convencer investidores e produtores. Mas a operação deu certo. Cinco anos depois, o cenário é muito diferente. Agora, as três são sócias da Vert Securitizadora, que assumiu o protagonismo na emissão desses títulos. Com 45 operações do tipo, a empresa tem sob gestão R$ 16,3 bilhões só em CRAs. E o futuro é promissor, já que hoje a quantidade de ferramentas à disposição dos agricultores para acessar o crédito aumentou. Além do Plano Safra, principal ferramenta para custeio da safra, é possível recorrer a linhas de crédito de instituições privadas. Mais empresas do agro passaram a abrir o capital na B3, a bolsa de valores brasileira. Existem ainda os recentes Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas da Agroindústria (Fiagro). Desde a formalização do modelo, em julho deste ano, já foram protocoladas 11 ofertas, somando R$ 3,3 bilhões. Segundo projeções da XP Investimentos, esses fundos somarão R$ 75 bilhões até 2025.
O surgimento de novos dispositivos de investimento e a popularização dos que já existiam se explica por meio de um casamento bem sucedido entre o mercado financeiro e o agronegócio. É até surpreendente que tenha demorado tanto para essa aproximação ocorrer, como afirmou o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio, Marcello Brito, em entrevista nesta edição da DINHEIRO RURAL (leia à página 8). Por sua resiliência e pujança, o agro brasileiro já deveria ter despertado há muito tempo o interesse da “Faria Lima” – nome da avenida que concentra bancos de investimento em São Paulo e, por isso, se tornou sinônimo de mercado financeiro. Mas, verdade seja dita, são setores com muitas diferenças. E isso explica a demora em ambos se entrosarem. “Primeiro, a gente tinha uma taxa de juro básica muito alta, o que deu pouco incentivo para entender um setor complexo”, afirmou Martha de Sá, CEO da Vert. Além das incertezas provocadas pelo fator clima, há questões como o tíquete médio, muito maior que outros setores, e os prazos ditados pelas safras. Todo o pagamento da compra dos insumos, por exemplo, precisa ser feito de uma vez só. “É tudo muito diferente do que os investidores estavam, de certa forma, acostumados”, disse Martha.
A compreensão das características do campo por parte dos investidores vinha evoluindo nos últimos anos, mas foi acelerada pela pandemia. Enquanto outros setores sofreram forte retração com a crise sanitária, o agronegócio cresceu. Em 2020, alcançou participação de 26,6% no PIB brasileiro, contra 20,5% no ano anterior. Essa excelente performance saltou aos olhos de quem vive de buscar retorno sobre o capital. E era exatamente de capital que os produtores rurais mais precisavam. Isso porque os recursos subsidiados oferecidos pelo Plano Safra simplesmente não dão mais conta das necessidades de investimento no campo. Nos quatro primeiros meses do Plano Safra 2021/2022 (de julho a outubro) foram contratados R$ 124,5 bilhões por produtores rurais, cooperativas e agroindústria, um valor 39% maior em comparação ao mesmo período da safra anterior. No total, o governo destinou R$ 251,2 bilhões em crédito rural, sendo R$ 165,2 bilhões a juros controlados e R$ 86 bilhões a juros livres, montante 6,3% maior que o do plano anterior.
A alta procura também se deve à demora na definição do Plano Safra. “Atrasou muito. As pessoas achavam que ele viria muito ruim e muito pequeno”, afirmou Bernardo Fabiani, CEO da TerraMagna, agfintech especializada em crédito para agricultores. “No final, ele não veio tão ruim, mas o que estamos vendo é uma demanda reprimida”, disse. Há ainda outro problema quando se fala em crédito subsidiado. O montante definido pelo governo é em reais, enquanto boa parte do preço dos insumos é atrelado ao dólar, que disparou nos últimos meses. “Tivemos basicamente uma manutenção do montante total do Plano Safra. Mas como o dólar subiu, o produtor perdeu seu poder de compra”, afirmou Fabiani.
FERRAMENTAS É nesse contexto de necessidade de capital, de mudança da situação fiscal, do avanço da questão regulatória e de crescimento do setor que novos agentes financiadores foram se aproximando dos produtores. “Primeiro, vieram os CRAs. Depois, começamos a ver outros títulos de dívidas, como as debêntures de infraestrutura, um modelo muito usado em bioenergia”, disse Pedro Freitas, head de Agro, Consumo e Varejo da XP. Em seguida, veio o mercado de equity e a entrada de diversas empresas do agronegócio na bolsa de valores, quebrando um jejum de oito anos. Em 2021, foram seis ofertas públicas, de Jalles Machado, Boa Safra Sementes, AgroGalaxy, 3tentos, Raízen e Vitia Fertilizantes, além de uma oferta subsequente de ações, da BrasilAgro.
Coroando a boda do campo com a Faria Lima surgiu o Fiagro, baseado nos Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs) e que já mostrou um grande potencial. Segundo balanço divulgado em setembro pela B3 há quase 1,5 milhão de investidores com recursos alocados em FIIs, cujo patrimônio líquido soma R$ 155 bilhões. “Essa evolução dos FIIs aconteceu de forma gradual. Dada a maturidade do mercado de capitais hoje, esperamos um crescimento muito mais acelerado dos Fiagro”, afirmou Freitas, da XP. Um dos benefícios que a novidade oferece é facilitar o acesso ao crédito para produtores menores. Isso porque, com o Fiagro, o investidor não compra um ativo diretamente. Quem faz isso é o gestor profissional do fundo, que atua em nome dos cotistas. “Isso vai potencializar não só a entrada de recursos, mas também diversas subcategorias do setor”, disse o executivo da XP.
Com a pandemia, a pujança do agro ficou em destaque e atraiu o mercado financeiro
Finanças verdes Ao mesmo tempo em que os mecanismos de acesso ao crédito se desenvolveram, outra revolução vem acontecendo: a busca por finanças verdes. Em tempos de discussão sobre boas práticas ESG (ambientais, sociais e de governança) e pressão do mercado e dos investidores por sustentabilidade, há um movimento de empresas associando suas captações e seus produtos às certificações. Nesse caso, um CRA pode ter um selo verde, bem como uma debênture ou um Fiagro. Um exemplo recente é a emissão de um CRA no valor de R$ 1 bilhão pela JBS, cujas taxas de juros estão atreladas à meta do grupo de controlar a origem, direta e indireta, de 100% do gado até o final de 2025. Nesses títulos com metas de sustentabilidade, conhecidos como SLB (Sustainability-Linked Bonds, da sigla em inglês), os juros aumentam caso as metas não sejam cumpridas. É um modelo diferente dos green bonds, ou títulos verdes, em que a totalidade dos recursos captados é destinada a projetos sustentáveis.
O potencial desse modelo é grande. “As empresas estão comprometidas, adotando práticas de rastreabilidade. Muita gente está envolvida e interessada nesse assunto”, afirmou Martha de Sá, da Vert. O problema, por enquanto, é que a teoria está avançando mais rapidamente do que a prática. Ainda faltam incentivos diretos para que o produtor adote novas técnicas, mais sustentáveis, e para que o investidor prefira fazer aportes em algo que tenha um selo verde. “Muitos investidores perguntam ‘se eu fizer ESG, vai ser mais barato?’ Por enquanto, não”, disse Martha. Se há duas emissões, com as mesmas taxas, a tendência é que o ESG atraia mais recursos. Mas ninguém está abrindo mão de taxa em nome da sustentabilidade. “Hoje, isso é um bônus. No futuro, será uma obrigação”, afirmou.
Pedro Freitas, da XP, concorda. “No momento, os benefícios são indiretos. Mas você acha que os grandes investidores de equity, ao verem que determinada empresa está captando selos verdes, não vão dar valor para isso?”, disse. Para empresas menores, ele argumenta que uma certificação verde pode facilitar a tomada de um empréstimo, por exemplo, ou será algo visto como um diferencial para uma trading. Tanto que a XP conta com uma equipe dedicada a buscar certificações e mostrar às empresas as vantagens de investir um pouco mais na certificação. “Mostramos que há um custo, mas que é importante a médio e longo prazo”.
Na outra ponta, há uma desconfiança do produtor em mudar técnicas de plantio que são rentáveis há muitos anos em nome de algo que, em alguns casos, pode ser visto apenas como retórica e que não oferece uma vantagem imediata. “O ser humano é movido a incentivos. E essa é a forma certa de motivar o agro a jogar esse jogo”, disse Martha. Se o produtor não ganhar nada em troca, ele dificilmente vai mudar seu método de produção. “Ao carimbar para o mal você cria os incentivos errados”, afirma a executiva. Uma solução é oferecer linhas de crédito diferenciadas, ou dar acesso a tecnologias que dão previsibilidade das próximas safras, ou ainda garantir um preço mínimo para cultivos mais sustentáveis.
Gargalos A falta de incentivo, infelizmente, não é o único gargalo para tornar essa relação ainda mais próxima. Há uma barreira digital que precisa ser superada. “O cliente às vezes não tem e-mail. Não tem familiaridade com uma plataforma on-line. A instituição não tem dados como alavancagem e área cultivada”, afirmou Fernanda Mello, CEO da DuAgro, agfintech criada a partir de uma parceria entre a Vert e a XP Investimentos que oferece linhas de crédito a agricultores a partir de revendas agrícolas. Para superar esse obstáculo é preciso entender como o produtor trabalha e quais são as metodologias que já funcionam longe dos grandes centros financeiros. Por isso a importância das revendas, que atuam como financiadoras da atividade no campo. São mais de cinco mil unidades espalhadas pelo País. Criar relacionamentos com todas é uma tarefa demorada. “É um trabalho de formiguinha”, disse Fernanda.
Há também uma dificuldade em fazer um monitoramento eficaz e de baixo custo, o que acaba afastando investidores menos afeitos ao risco. Mensurar a adoção de boas práticas no campo, por exemplo, é um processo caro. Usar a tecnologia para acompanhar variações climáticas e estimar a produtividade da safra, também. Por isso, como costuma acontecer no agro (e também em outros setores), os grandes produtores são os primeiros beneficiados, simplesmente porque têm mais recursos para isso. E, assim, os pequenos agricultores acabam ficando de fora desse processo de mudança.
Incentivo pode ajudar o produtor a superar a falta de confiança e adotar novas práticas
“Um dos principais desafios está relacionado ao financiamento aos pequenos produtores, pois esses necessitam de recursos com condições favoráveis que, em geral, não revertem em grande receita para a instituição financeira”, afirmou Gustavo Freitas, diretor executivo de crédito do Banco Cooperativo Sicredi. As cooperativas de crédito têm ajudado a fornecer os recursos necessários, em um horizonte no qual a demanda por capital só cresce. Se ainda há muito a fazer, a boa notícia é que o caminho está traçado e com um objetivo comum: produzir mais e melhor.