Na entrada da fazenda Cachoeira 2C, em Sertanópolis, a 450 quilômetros de Curitiba, a capital paranaense, é possível avistar um belo cenário de plantas ornamentais. O que mais se destaca na paisagem é a imensa plantação de ashopalo, popularmente conhecida como choupala. A árvore símbolo da Índia, que no inverno contrasta com as demais por ficar carregada de folhas, foi trazida ao Brasil pelo pecuarista Celso Garcia Cid, entre idas e vindas àquele país. No entanto, o imigrante espanhol, que chegou aqui em 1932, não trouxe do continente asiático apenas a rara espécie vegetal. Ele carregou na bagagem parte da atual história da genética para o gado nelore brasileiro e para o gir leiteiro. Sua paixão pelo gir foi tão grande que não titubeou quando o touro Krishna, que importara, morreu, em 1961: mandou embalsamar o animal. Quem entra na sala de estar da sede da fazenda pode ler, entre as patas de Krishna, uma plaqueta com os seguintes dizeres: “Quer conhecer gir? Observe-me!”

Espécie rara:

na entrada da fazenda, fileiras de choupala lembram que ali tudo remete à terra do zebu

“Seu Celso”, como era conhecido, antes de se tornar pecuarista e empresário, trabalhou como garçom, motorista e mecânico. Ele foi um dos fundadores, em 1934, da Viação Garcia, que se tornou a maior empresa de ônibus do Parará, vendida por seus herdeiros ao empresário paulista Mário Luft, por R$ 400 milhões, no ano passado. Mas, apesar de ser um empresário de sucesso, foi garimpando gado na Índia na década de 1960 que Garcia Cid ganhou prestígio, principalmente entre os neloristas. Quase meio século depois, a fazenda Cachoeira 2C ainda guarda lembranças, objetos e o resultado do trabalho do seu patriarca para formar um dos mais importantes criatórios de nelore do País. Hoje, os negócios estão nas mãos da filha Beatriz Garcia Cid e dos netos Guilherme, Gustavo e Gabriel Garcia Cid. Aos 36 anos, responsável pela atual administração da fazenda, Gabriel não conheceu o avô, que morreu em 1972, mas desde criança ouve histórias do empreendedor. “Sempre tive como meu maior desafio a responsabilidade de um dia tocar o trabalho que meu avô iniciou”, diz Gabriel.

“ Sempre tive como meu maior desafio a responsabilidade de um dia tocar o trabalho que o meu avô iniciou”

Gabriel garcia cid e o touro ladhan dc, campeão no ranking do paraná

 

A fazenda Cachoeira 2C construiu uma trajetória de conquistas nas pistas de julgamento de exposições, tanto no nelore como na raça gir. Nos leilões, os animais do criatório sempre alcançaram médias de preços expressivas. No último leilão Cachoeira Fest, realizado em abril, durante a Expo Londrina, no norte do Paraná, a média de preços foi de R$ 60 mil para as fêmeas, de R$ 50 mil para as prenhezes e de R$ 8 mil para os reprodutores. “Nos últimos 15 anos, realizamos 25 leilões e conseguimos uma média, por leilão, de R$ 1,5 milhão”, diz Gabriel. “E não queremos parar.” Essa disposição não ocorre por acaso: segundo ele, já vai longe o tempo em que o sobrenome de um criador era a garantia de sucesso nos leilões. “Hoje, isso já não funciona mais”, diz. “É preciso mostrar os resultados no melhoramento do gado.” Para Beatriz, essa foi uma preocupação sempre presente nas negociações que o pai realizava.“A vontade dele era disseminar a boa genética trazida da Índia”, afirma. O criatório da fazenda 2C é um dos poucos no País que preservam até hoje linhagens de animais puros de origem importada, os chamados POIs, gado controlado pela Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) que nunca foi cruzado com animais sem registro ou de genealogia desconhecida.

Linhagens:

a fazenda 2C é uma das poucas do País que preservam animais puros de origem importada

 

Os dois principais touros importados por Garcia Cid, em 1960, foram Arjun e Vijaya Narayana, animais que contribuíram para formar a base de criação da fazenda 2C. Mas as viagens à Índia renderam ao criador muito mais que negócios. Em 1965, alguns anos após a morte do marajá de Bhavnagar, seu filho e herdeiro, Virbhadra Singh, enviou uma carta ao Brasil, expressando a última vontade de seu pai: doar seu rebanho à família Garcia Cid. “Foram cerca de 80 animais herdados por meu avô”, diz Gabriel. Mas os animais nunca chegaram ao Brasil, pois a partir de 1962 o governo brasileiro proibiu as importações da Índia. De acordo com seus contemporâneos, Garcia Cid sempre foi um homem à frente de seu tempo. Em meados de 1970, por exemplo, ele começou a promover a inseminação do gado, época em que a técnica, hoje corriqueira, era uma grande novidade. O mesmo ocorreu com as transferências de embriões, logo incorporadas à rotina da fazenda. Os investimentos, ao longo dos anos, resultaram em muitas premiações. Atualmente, os animais da fazenda 2C disputam o tricampeonato consecutivo do ranking nelore no Paraná. Nos últimos seis anos, a fazenda conquistou quatro grandes campeonatos de nelore e diversos campeonatos com bezerros e novilhas da raça gir, na Expozebu, em Uberaba (MG).

Herança de família:

na sala de estar, Beatriz mantém o touro embalsamado pelo pai em 1961

As histórias de Celso Garcia Cid Contadas por Beatriz

Desde que decidiu seguir para a Índia em 1957, ano da primeira de três viagens, pelo resto de sua vida o pecuarista Celso Garcia Cid não parou mais de apostar na raça nelore. A filha Beatriz Garcia Cid diz que jamais imaginou que o pai se sairia tão bem.

Como seu pai conseguiu permissão para importar gado da Índia?

Meu pai, teimoso e persistente, não sossegou até falar com o presidente Juscelino Kubitschek, que acabou assinando a licença da importação.

Naquela época, já se falava de importação de gado?

Nunca tinha ouvido falar nisso. Era como trazer um animal exótico.

Em que condições Seu Celso chegou ao Brasil?

Ele saiu da Galícia, na Espanha, aos 19 anos. Em 1932, estava fugindo da Segunda Guerra. Veio atrás dos irmãos que já estavam no Brasil.

Quando começou a paixão pela pecuária?

Na Espanha, ele era do campo e acostumado a arar a terra. Já no Paraná, ele comprou um sítio, no município de Warta, onde tudo começou.

Qual a imagem que a sra. guarda de seu pai?

Era um homem à frente de seu tempo. Não pensava nas coisas para ele e sempre dizia: “Se quisesse gado só para mim eu teria trazido da Índia apenas um touro e uma vaca.”

Terra de amigos:

Celso Garcia Cid, (à esq.) fez três viagens à India, entre 1957 e 1962, e estabeleceu amizade com o marajá de Bhavnagar

Três vacas inférteis e uma desilusão

Celso Garcia Cid dizia que foi a compra de três vacas inférteis que o motivou a ir buscar gado na Índia. Abaixo está um trecho do livro escrito por Domingos Pellegrini, em 1990, uma homenagem dos netos ao patriarca fundador da marca Nelore Cachoeira 2C.

“Ildefonso (funcionário da fazenda) não se

esquece que estava pescando, com Celso

ao lado, pensando e olhando a água, as

três vacas na cabeça.

– Esquece isso, Seu Celso. Fora de Minas,

zebu só mesmo buscando na Índia, já falei!

– E você tem coragem de ir, Ildefonso?

– Se o sr. comprar, eu trago.

– Mas é proibido, Ildefonso.

– Mas é só lá que a gente vai conseguir.

Celso não falou mais nada. Dormiu na

fazenda. No dia seguinte, cedinho, foi procurar

Ildefonso.

– Como é? Tá mesmo decidido?

– Decidido a quê, Seu Celso?

– Buscar gado na Índia, nós não vamos

buscar gado na Índia?!

 

Apesar da reverência, para o neto Gabriel, o segredo da evolução constante na seleção de bons animais não está apenas na herança deixada pelo avô. “Nesses anos todos, fizemos dois movimentos: preservamos as linhagens POI e passamos a trabalhar no seu melhoramento genético”, diz. Há 15 anos, tanto o rebanho nelore quanto o gir são avaliados, em programas oficiais. O nelore faz parte do programa Geneplus-Embrapa, uma ferramenta que auxilia no processo de seleção em busca de animais superiores. O gir está no programa de melhoramento da raça para animais produtores de leite, coordenado pela ABCZ. “O objetivo é manter o equilíbrio entre as características raciais dos animais e a sua produtividade”, diz Gabriel. Para ele, os animais POI servem muito bem aos criadores que necessitam refrescar o sangue em seus rebanhos, em razão de acasalamentos consecutivos entre animais aparentados. “Mas não basta apenas ser um animal POI, ele precisa ser superior”, afirma. “De nada adianta ter uma vaca fértil que crie um bezerro leve.”

 Gir leiteiro:

a raça teve importância na década de 1960, quase caiu no esquecimento, mas foi redescoberta

A fazenda Cachoeira 2C tem uma área de 242 hectares onde são mantidas 250 fêmeas nelore PO e 20 doadoras POI. O resultado dos acasalamentos é de 300 nascimentos por ano. Em outra propriedade bem próxima da 2C, a fazenda Barra Mansa, de 1.400 hectares, estão mais 200 fêmeas nelore criadas a campo. “Nossa intenção é aumentar o número de animais desse rebanho, para produzir uma quantidade maior de tourinhos e de fêmeas mais rústicas”, diz. Hoje, na maior parte dessa fazenda há cultivos de milho, soja e mandioca.

Um dos resultados que os Garcia mais gostam de mostrar é a quantidade de touros superiores que conseguiram colocar em centrais de inseminação: seis em dez anos. Entre os machos nelore, o atual destaque é Ladu DC POI, que já rendeu R$ 840 mil com a venda de 30 mil doses de sêmen. Entre as apostas, a principal é Shadini, um POI que está entre os touros top no Sumário 2011 da ABCZ-Embrapa. Segundo Gabriel, os compradores de sêmen querem produto de touros provados em programas de melhoramento. “Quem compra, seja o que for, quer saber se aquilo que está levando tem dados de produção.” Para o gado gir, o trabalho implica manter a linhagem trazida pelo avô Garcia Cid. Por isso, o trabalho é de resgate do que já foi realizado em décadas passadas e que quase foi abandonado. O atual rebanho de gir leiteiro é de apenas 40 animais, quantidade que deve permanecer inalterada. “O que vamos fazer é melhorar esse banco genético”, diz Gabriel. De acordo com ele, o gado gir foi importante na década de 1960, mas nas seguintes caiu no esquecimento. Nos últimos oito anos, foi redescoberto, depois que o modelo de criação de vacas leiteiras a pasto passou a ser adotado pelos produtores de leite, em contraposição ao modelo anterior, de vacas fechadas em estábulos.