04/01/2025 - 17:54
A Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio de Janeiro, presenciou neste sábado (4) o encontro de dezenas de parentes de crianças que foram mortas por balas perdidas no estado ao longo dos últimos anos. O protesto foi convocado pela organização sem fins lucrativos Rio de Paz.
Todos seguravam cartazes com retratos de 49 vítimas. Além de ser um grito contra a violência, a manifestação serviu para cobrar da prefeitura o direito de manter um memorial numa área turística, que fica na zona sul, região mais nobre da cidade.
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No último fim de semana, a Rio de Paz foi surpreendida ao saber que a prefeitura retirou as fotos que ficavam presas em um gradil e formavam o memorial no trecho da Lagoa chamado de Curva do Calombo. Cartazes com nomes de policiais assassinados, afixados pela organização na mesma grade, não foram retirados pela administração municipal.
A dona de casa Thamires Assis segurava a foto da filha, Ester Assis, morta ao ser atingida por uma bala perdida na cabeça, enquanto voltava da escola no dia 5 de abril de 2023, em Madureira, zona norte da cidade. A menina tinha apenas nove anos. Na ocasião, havia um confronto entre traficantes.
Para a mãe de Ester, manter a homenagem na Lagoa é uma forma de “pedir ajuda e justiça pelas crianças”.
“É a única forma de nós, pais, gritarmos por ajuda. Isso aqui é para mostrar para o prefeito, governador, para quem [quer que seja], que nossas crianças merecem ser respeitadas, em qualquer lugar em que elas morem”, disse Thamires à Agência Brasil.
Blusa de escola
Ser atingido por um tiro no trecho entre a escola e a casa foi também o destino de Marcus Vinicius da Silva, que tinha 14 anos, quando morreu em 2018., que tinha 14 anos.
Bruna da Silva levou para o ato a blusa de escola que o filho usava quando foi baleado. A mãe conta que o garoto foi ferido durante uma operação da Polícia Civil no conjunto de favelas da Maré, na zona norte. A família acusa a polícia pela morte de Marcus Vinicius.
Ela reforça o pedido para que o prefeito do Rio permita a existência do memorial. “Com tanta coisa para ele fazer, mudar e melhorar nesse Rio de Janeiro, que ele não venha se preocupar com o rosto dessas crianças. Por que essas crianças estão incomodando?”, desabafou.
Ação policial
A ação da polícia também é apontada como causa da morte do jovem Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, em agosto de 2023, na Cidade de Deus, comunidade na zona oeste do Rio. Quatro policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar (PM) chegaram a ser indiciados pelo assassinato durante uma troca de tiros.
A tia do rapaz, Ana Cláudia Araújo, defende que a exposição dos rostos na Lagoa é uma forma de chamar a atenção da sociedade carioca para a violência. “A gente está aqui para dar visibilidade aos nossos parentes porque a gente acha importante que esse tipo de ato aconteça. As pessoas da Zona Sul não têm noção da nossa realidade dentro das comunidades”, declarou.
Visibilidade
O fundador da Rio de Paz, Antonio Carlos Costa, classificou como “falta de sensibilidade” a decisão do prefeito Eduardo Paes de remover o memorial sem qualquer comunicação prévia com a organização ou com os pais das crianças.
Costa explicou que a exposição existia na Curva do Calombo havia nove anos, mas sem retratos, apenas cartazes contendo os nomes das vítimas. Só no sábado passado (28) os nomes foram trocados pelas fotos.
Ele chamou de “quebra de simetria” a decisão de retirar apenas as fotos das crianças e manter os nomes dos policiais mortos. “Temos que chorar pela morte dos nossos policiais, mas não podemos nos esquecer de chorar também por essas crianças”, avaliou.
Para Costa, o prefeito ordenou a remoção das fotos em menos de 24 horas após sofrer algum tipo de pressão. “As imagens chegaram a pessoas que não têm interesse na vida dessas crianças, que demonstraram uma estranha preocupação com a ordem pública”, disse.
“É pior para a imagem do Rio de Janeiro [a série] de mortes de crianças por balas perdidas na nossa cidade do que as fotos das crianças mortas por bala perdida no cartão postal do Rio de Janeiro”, declarou.
O fundador da Rio de Paz explicou que a escolha de um cartão postal para fazer o memorial é uma forma de a mensagem chegar a formadores de opinião e representantes do poder público. “Estamos deliberadamente criando um baita de um constrangimento para as autoridades públicas do nosso estado. Elas precisam ser confrontadas”, opina.
Além das fotos das 49 crianças mortas entre 2020 e 2024, a Rio de Paz expôs na Lagoa uma faixa com a frase “Morte de crianças: a face mais hedionda da guerra”. Ao fim do ato, todo o material foi recolhido pelos organizadores.
“Vamos respeitar a decisão que o prefeito tomou. Só vamos retornar as fotos para esse local se ele assim o permitir. Mas fica aqui a expressão da nossa mais profunda indignação”, afirmou Costa.
“Não há a mínima chance de essas mortes continuarem contando com o nosso silêncio”, adiantou ele, que responsabiliza o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, por mortes relacionadas a operações letais em comunidades.
Prefeitura
A Agência Brasil solicitou comentários à prefeitura do Rio sobre o ato deste sábado, mas não recebeu retorno até a conclusão da reportagem. No fim de semana passado, quando houve a remoção do material, a prefeitura informou, por meio de nota, que reconhecia a importância e a necessidade da homenagem às crianças vítimas da violência, mas que retirou o material por não ter sido consultada pelos organizadores para autorizar a montagem da exposição em um local público.
A prefeitura acrescentou que avaliava a pertinência de manter no mesmo local a homenagem aos policiais militares assassinados, “que também é justa e necessária”.
“O município tem total interesse em combater a violência, prestar justas homenagens às suas vítimas e está aberto para debater qualquer tipo de iniciativa, desde que seja previamente consultado”, finalizou o comunicado.
Além das manifestações na Lagoa Rodrigo de Freitas relacionadas às mortes de policiais e crianças, a Rio de Paz é notória por realizar atos de protestos silenciosos nas areias da praia de Copacabana, geralmente com placas, cartazes e cruzes.
De acordo com a organização, os atos provisórios na orla são feitos sem solicitação prévia de autorização. Apenas uma manifestação teve resistência da prefeitura, quando guardas municipais removeram réplicas que simbolizavam barracos, em 2016. O protesto questionava o legado da Olimpíada, realizada na cidade naquele ano.
A Agência Brasil procurou o governo do estado sobre a ocorrência de confrontos e balas perdidas, mas não recebeu resposta. A segurança pública é uma das atribuições dos governos estaduais.