12/07/2024 - 17:07
Estudo recente aponta para prejuízo de R$ 10 bilhões no leste da Amazônia; impacto maior é nos chamados serviços ecossistêmicos, que afetam clima, economia e qualidade de vida da região.Muitas vezes a ciência mira em pontos específicos para trazer compreensão ao fenômeno macro. Buscando mensurar os prejuízos econômicos acarretados pelo avanço do cultivo de soja em áreas florestais, uma equipe de pesquisadores analisou o que ocorreu na Bacia do Gurupi, entre os estados do Pará e do Maranhão, entre 1985 e 2021.
No período, a área florestal dali sofreu uma redução de 25%. De modo inverso, aumentou a área agrícola — em 84% desses terrenos, destinada ao cultivo de soja. Para quem está no local, os efeitos podem ser visíveis no desmatamento e percebidos no aumento da temperatura e na secura do ar. Mas para mensurar de modo claro, os estudiosos decidiram estimar a perda econômica resultante dessa transformação.
A conta é de cerca de R$ 10 bilhões em serviços ecossistêmicos — US$ 1,96 bilhões. Em outras palavras, isso significa que a natureza, exaurida, está conseguindo suprir menos benefícios aos humanos, com alteração no regime das chuvas, aumento de temperatura média anual e redução de polinização, diminuição de matérias-primas disponíveis, entre outros.
Conforme explica a ecóloga Ima Vieira, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi e coautora do estudo — publicado no fim de maio na revista Ambiente & Sociedade — o cálculo foi feito a partir da consideração de 210 valores relacionados aos serviços ecossistêmicos. “Alguns têm mais registros de valores estimados do que outros. Por exemplo: polinização e matéria-prima”, comenta ela.
A questão é que, no mesmo período, o avanço da soja na região trouxe lucro até superior a esse prejuízo ecossistêmico — quase R$ 12 bilhões. Mas esse saldo de 20% não se justifica porque não será sustentável a curto prazo, dado que a falência ecossistêmica tende a prejudicar também o cultivo da soja e de outras commodities.
“O que estimamos foi o valor econômico ganho com o aumento das áreas de agricultura, relacionada à categoria ‘alimentos’”, esclarece a engenharia ambiental Fabiana da Silva Pereira, que estudou o assunto em seu doutorado e também é uma das autoras do artigo. “Nesse período, houve um ganho de US$ 2,35 bilhões devido ao aumento das áreas de agricultura, porém esses valores devem ser vistos com cautela, uma vez que 84% dessas áreas são referentes ao plantio de soja, destinada principalmente à exportação, sem servirem de fato como alimento para a população local.”
Ela ressalta que é preciso lembrar que “além de alimentos, as florestas fornecem uma diversidade maior de serviços ecossistêmicos, tais como água, materiais madeireiros e não madeireiros, plantas medicinais, recursos genéticos, polinização, regulação climática, moderação de eventos extremos, além de serviços culturais, como recreação, turismo, educação e espiritualidade.”
Em outras palavras: a conta só fecha na primeira camada da história. E, se a degradação continuar assim, logo não vai fechar nem assim, porque a tendência é que a produtividade da soja também caia em função de alterações climáticas e pluviométricas.
Pesquisadora do Centro de América Latina da Universidade de Amsterdã, na Holanda, Gabriela Russo Lopes reconhece que há um dilema presente nas narrativas financeiras, porque “são várias verdades convivendo ao mesmo tempo”.
“Uma delas é que a soja é importante para a balança comercial do Brasil”, diz. “A outra é que a soja, ao promover o desmatamento direto ou indireto no caso da Amazônia, faz com que tenhamos severas perdas em relação a mudanças climáticas, regime de chuvas, ciclo hídrico e a questão do carbono estocado pelas vegetações nativas.”
Em sua leitura, o olhar exclusivamente voltado para a balança comercial pode sinalizar benefícios ou mesmo a interpretação de que “a soja ajuda no crescimento do país”. “No entanto, um olhar mais holístico, para outros elementos, revela que existem muitos prejuízos nesse processo”, pondera Lopes.
A ecóloga Adriane Esquivel-Muelbert, pesquisadora na Universidade de Birminghan, no Reino Unido, recorda que há estudos que mostram que a fragmentação da paisagem florestal contribui para a aceleração do aumento da temperatura. O que pode, no curto prazo, significar um tiro no pé também do produtor de soja. “O plantio não vai se dar bem com verão de 50 graus”, ressalta ela.
45 milhões de hectares de soja
Segundo a plataforma Mapbiomas, a ocupação territorial do cultivo de soja no Brasil saltou de 4,4 milhões de hectares em 1985 para mais de 39 milhões em 2022 — segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), já são 45 milhões de hectares. Analista ambiental da organização WWF-Brasil, o pesquisador Tiago Reis enfatiza que o balanço econômico dessa produção “não fecha”.
“É uma grande miopia. A soja causa mais prejuízo do que lucro. Externaliza e socializa os prejuízos e internaliza para poucos o pouco lucro perto do prejuízo”, avalia Reis. “Há impactos sociais, ambientais, tributários, enfim, várias distorções.”
Pesquisador sênior do Instituto Ambiental de Estocolmo, na Suécia, o biólogo Mairon Bastos Lima argumenta que “a grande questão é quem perde e quem ganha com essa expansão vertiginosa do monocultivo de soja, no muito alternado com o milho, por cima da vegetação nativa ou da agricultura familiar”.
Lima pontua que o lucro fica restrito aos “fazendeiros de soja, que taticamente se vendem como campeões nacionais para obter apoio público e político”. “Mas o lucro deles é privado, não vai para o tesouro nacional”, ressalta ele, complementando que grande parte do rendimento desses agroprodutores é utilizado para pagar por insumos agrícolas “geralmente importados”. “Então é um dinheiro que acaba saindo do país e indo para multinacionais lá fora”, explica.
“Já quem perde somos todos nós e, sobretudo, quem vive na região das derrubadas de floresta”, afirma. “Sofre de imediato com as queimadas, os problemas respiratórios, as perdas da qualidade ambiental e dos recursos naturais que usam: água, produtos florestais não-madeireiros e outros.”
Ainda há o impacto na agricultura familiar, que perdem ora espaço, ora sofrem com contaminações decorrentes de agrotóxicos utilizados pelo agronegócio. “Perdemos todos também com uma alimentação cada vez mais ultraprocessada, com óleo e proteína de soja, enquanto arroz e feijão, com cada vez menos área plantada, ficam mais caros. É um prejuízo tão grande que é difícil dimensionar na totalidade”, sentencia.
Na análise do pesquisador, o xis da questão é que, no caso da soja, lucro e prejuízo “não envolvem as mesmas pessoas”, “ainda que a destruição da floresta altere o regime de chuvas e prejudique o próprio setor da soja, esse é um setor que daí vai procurar se adaptar buscando irrigação e explorando nossas reservas de água subterrânea”. “Quem muitas vezes não tem como ou não consegue se adaptar são os agricultores familiares e a população local, com um ambiente cada vez mais seco e hostil”, acrescenta.