O Brasil está diante de um aumento de violência contra a mulher. Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio do Instituto Datafolha revelou que todas as formas de violência desse tipo cresceram no período recente. “Foram mais de 18 milhões de mulheres vítimas de violência no último ano. São mais de 50 mil vítimas por dia, um estádio de futebol lotado”, afirma Samira Bueno, diretora executiva do Fórum.

Ao mesmo tempo, o estudo revela que uma a cada três mulheres brasileiras (33,4%) com mais de 16 anos já sofreu violência física e/ou sexual de parceiros ou ex-parceiros. O índice é maior que a média global, de 27%. “Isso mostra o quão disfuncionais e problemáticas são as relações sociais no Brasil, e o quanto temos que avançar pensando políticas públicas de proteção”, diz Samira. Confira principais trechos da entrevista com a pesquisadora.

Qual foi o principal achado da pesquisa?

O primeiro ponto que vale destacar é o crescimento de todas as modalidades de violência contra a mulher no ano passado. A pesquisa é de 2023, mas diz respeito à violência sofrida ao longo de 2022. É um survey que a gente faz sobre vitimização e a gente pergunta sobre violências sofridas nos 12 meses que antecederam a pesquisa.

Como a gente está na quarta edição dessa pesquisa – a gente faz ano sim, ano não desde 2017 -, é o maior número. A gente está diante de um recorde de violência contra mulher em todas as modalidades: violência psicológica, sexual e física tiveram crescimento. Assédio sexual também. Foram mais de 18 milhões de mulheres vítimas de violência no último ano. São mais de 50 mil vítimas por dia, um estádio de futebol lotado.

Ainda que grande parte dessas mulheres não tome uma atitude (o estudo fala que cerca da metade das vítimas não toma nenhuma ação após a agressão), o Estado brasileiro teria capacidade para atender toda essa demanda?

Pouco menos da metade dessas mulheres vítimas de violência estão situadas nas capitais e regiões metropolitanas, e 52% residem no interior. A gente sabe que equipamentos especializados estão muito concentrados nas capitais. Então, mulheres que vivem no interior não têm uma rede de acolhimento como aquelas que vivem em grandes cidades. Menos de 10% dos municípios brasileiros têm delegacias da mulher, são pouco mais de 600 unidades (em São Paulo, são 140). É um número muito elevado de casos todos os dias, e, mais do que isso, a gente tem uma distribuição dos serviços necessários ao acolhimento dessas mulheres que é muito desigual.

Um outro dado importante do estudo é que um terço das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais já sofreu violência física e/ou sexual por parceiros ou ex-parceiros em algum momento da vida. É a primeira fez que essa informação é levantada por vocês?

Sim, é a primeira vez que a gente faz essa pergunta. Esse número não existia antes nas nossas pesquisas, mas a gente se baseou em algumas questões de um survey da Organização Mundial da Saúde (OMS), que foi aplicado em mais de cem países, e aplicou no Brasil. Agora, a gente tem o porcentual de mulheres que sofreram violência física, sexual e psicológica ao longo da vida.

Esse último tipo, em geral, é até mais frequente, o que revela um pouco da magnitude do problema, e como isso é algo frequente. Quando se considera esses três tipos de violência, chega a 43% das mulheres. No recorte de violência física e sexual, foram 33%, número maior que a média global, que é de 27%. Isso mostra o quão disfuncionais e problemáticas são as relações sociais no Brasil, e o quanto temos que avançar pensando políticas públicas de proteção dessas mulheres.

O que o fato de a violência vir do próprio parceiro ou ex-parceiro na maioria dos casos diz sobre como as relações se configuram no País?

A gente está falando de uma violência que tem uma herança em raízes culturais. Elas vêm justamente dessa ideia da mulher submissa, da mulher como propriedade do homem, uma ideia de uma sociedade ainda machista e patriarcal, que considera essa desigualdade entre homens e mulheres algo normal.

Não é à toa que a gente vê que as mulheres divorciadas estão tão mais expostas à violência do que mulheres casadas ou solteiras. É muitas vezes no momento de essa mulher tentar romper com a violência em que esse homem se torna mais agressivo. A maior parte dos casos que a gente tem visto nos últimos tempos, inclusive, decorre desse tipo de comportamento por parte do agressor. O gatilho, muitas vezes, é a separação ou quando essa mulher passa a se relacionar com outra pessoa (após o término) e o ex-parceiro não aceita.

Os dados indicam que no último ano aumentou a procura das vítimas por delegacias da mulher (saltou de 11,8% dos casos, na pesquisa de 2021, para 14%, na de agora). Esse ímpeto de buscar ajuda é um ponto positivo?

Com certeza. A pesquisa traz algumas contradições. Por um lado, a gente tem o crescimento dessa procura por delegacias da mulher, que são espaços especializados, o que é importante, já que a gente está falando de mais mulheres encorajadas a buscar o Estado.

Por outro, quando a gente pergunta para eles o porquê de não terem procurado a polícia, a gente também tem um porcentual significativo de mulheres que dizem que não achavam que a polícia fosse capaz de oferecer uma solução para aquele problema e de mulheres que achavam que não tinham provas suficientes. Essa contradição consiste em essa mulher achar que há uma certa transferência de responsabilidade, em que ela tem que produzir a prova. Em resumo, as mulheres dizem que procuram a polícia para punir o autor da violência de forma mais severa, mas ao mesmo tempo existe uma certa desconfiança nesse aparato institucional.

O que dizer sobre o perfil dessas vítimas?

A violência contra a mulher é muito “democrática”, no sentido de que ela atinge mulheres de todas as classes sociais, de todas as raças e etnias etc. Mas tem grupos que são mais vulneráveis, como mulheres com baixa escolaridade (em geral, com ensino fundamental apenas), pretas e pardas, e que recebem até dois salários mínimos.

Quando a gente vai olhar o tipo de violência, às vezes a gente encontra algumas matizes que diferenciam um pouco. Por exemplo, mulheres jovens aparecem com mais frequência entre vítimas de violência sexual e psicológica. Já mulheres um pouco mais velhas, acima dos 30 anos, aparecem mais frequentemente como vítimas de violências físicas, especialmente aquelas mais graves, como espancamento e ameaça com arma de fogo.

Esse padrão se manteve no último ano?

Sim, o que coincide, em grande medida, com o perfil da vítima de feminicídio. Quando a gente analisa os registros, é essa mulher que mais aparece. Não que a mulher com ensino superior completo e que ganha que mais de cinco salários mínimos não sofra violência doméstica. Ela também sofre. Mas, até pela formação e pela renda, ela tem mais capacidade de buscar ajuda.

Como os dados de violência da pesquisa dialogam com estatísticas de crimes mais brutais, como feminicídio e estupro? Nesta semana, dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) apontaram alta de estupro em janeiro no Estado. Há uma tendência de alta de crimes contra mulher?

O que a gente percebe, não só pelos dados de janeiro da SSP, mas de todo o ano passado, é que o Brasil está diante de um aumento de violência contra a mulher, seja da violência sexual, seja de feminicídios. Eles cresceram em São Paulo no ano passado. Homicídios dolosos de mulheres também cresceram no ano passado. E o nosso entendimento é que isso ainda vai crescer, porque a vitimização (objeto da pesquisa) e esses dados administrativos andam mais ou menos com uma mesma tendência. Quando a gente soltar o Anuário, a gente muito provavelmente vai mostrar crescimento de homicídios dolosos de mulher, feminicídios e estupros de modo geral.

O que a pesquisa revela, e aí a vitimização nos ajuda a olhar aquele caso que não chega ao Estado, já que a mulher não vai até a delegacia fazer o registro, é uma bússola para a gente olhar o que está acontecendo. Houve aumento de violência contra a mulher no ano passado. Nosso desafio é tentar entender o que foi determinante nesse período e o que fazer para interromper esse quadro.

Existia uma aposta muito grande que a gente da violência contra a mulher aumentaria durante a pandemia, porque era algo que estava sendo observado em vários países, mas que, passada a fase mais grave da pandemia, esses números recuariam. E, na verdade, os números cresceram após a pandemia. A gente está diante, de fato, de um agravamento. É um País que ficou mais inseguro para a mulher.

Esse foi até um alerta que o Fórum fez na divulgação do Anuário do ano passado, que, por mais que os feminicídios não tivessem tido alta, os casos de agressão estavam em uma crescente. Isso, de certa forma, cria uma tensão para esses crimes mais graves?

Exatamente. Na pesquisa, a gente chama atenção para os casos de perseguição, chamado stalking, e de ameaça com arma de fogo. Esses dois indicadores são dois fatores de risco para feminicídio. Se essas duas coisas estão crescendo, a gente sabe que tem mais armas em circulação na sociedade, é quase que questão de tempo.

Quando a gente vê tudo isso começando a crescer, infelizmente daqui a alguns meses os números da violência letal também começam a andar na mesma direção. Nesse caso, a gente nem está falando de um crescimento só de registros específicos de feminicídio, mas os homicídios dolosos contra mulheres estão crescendo também. Mais mulheres estão morrendo, assim como mais mulheres sendo agredidas fisicamente, sendo vítimas de perseguição, sendo ameaçadas.

Quais são as soluções possíveis a curto prazo? Aumentar o número de delegacias da mulher é um caminho?

Na pesquisa, a gente não coloca a criação de delegacias especializadas (como uma prioridade) no estudo, porque a conta não fecha. São tão poucas, considerando a dimensão do Estado brasileiro. Mas a gente aposta em outras sugestões.

A primeira é o fortalecimento das redes de acolhimento, principalmente por município e Estado. Assistente social, saúde, integração com outros serviços, como de polícia e Ministério Público… A mulher que foi vítima de violência precisa ter acesso a uma rede minimamente estruturada. Muitas vezes no interior isso não existe.

A segunda é ampliar investimento do Estado brasileiro nessa área. Um estudo do ano passado mostra que a gente teve o menor orçamento voltado por parte do governo federal na história. Antes de 2022, o pior tinha sido em 2021. E antes tinha sido o de 2022. A gente está numa redução, no mínimo, há uma década, dos valores empenhados. Sem dinheiro, você não faz política pública. A gente conecta isso inclusive com uma legislação que foi aprovada no ano passado que muda a Lei do Fundo Nacional de Segurança Pública. A partir de 2023, 5% dos recursos do fundo precisam ser aplicados em políticas de enfrentamento de violência contra a mulher. Os recursos vêm direito da Caixa Econômica Federal. Isso dá mais do que a gente teve nos últimos quatro anos somados, mas não adianta ter o dinheiro se não tiver por parte do governo federal uma diretriz clara de onde ele vai ser aplicado, para quem vai ser transferido, quais são os Estados prioritários.

Um terceiro ponto que vale destacar é a padronização de protocolos. Isso é uma outra coisa que o governo federal, especificamente o Ministério da Justiça, poderia fazer para não deixar a violência contra a mulher como algo restrito das delegacias especializadas. Assim como todo policial aprende a tirar, ele precisa saber atender a mulher vítima de violência.

O que São Paulo fez foi instalar salas 24 horas de delegacia da mulher pelo Estado para que policiais especializados atendam as vítimas…

Sim, essa mulher vai numa delegacia comum e pode ser atendido pela Central da Delegacia da Mulher, virtualmente. Se ela está numa delegacia comum, ela pode ser conectada por videoconferência com uma delegacia da mulher. Tem uma equipe que atende 24 horas, de plantão na cidade de São Paulo. É uma boa ideia. Não tem uma especializada na cidade que ocorreu a violência, mas tem uma delegada na capital que pode auxiliar no atendimento. Tem que pensar nessas medidas como complementares.