28/12/2020 - 14:22
O mercado de Díli estava lotado quando a mão de um homem com uma faca avançou em direção de Xanana Gusmão, o líder da independência do Timor Leste. Quarto dan em caratê, o cabo Marcelino José Conceição deteve o golpe com a mão, desarmando o agressor. Enquanto a faca caía no chão e o terrorista fugia em meio à confusão, um dos homens da escolta apanhou o líder pela calça com uma das mãos e com a outra empurrou suas costas, guiando-o através da multidão.
O chefe da escolta, o então tenente Fabiano Augusto Cunha da Silva, reuniu seus dez homens e saiu com Xanana nos três carros da comitiva. Foram para Aileu, cidade a 1,2 mil metros de altitude, nas montanhas que dividem a ilha entre a parte indonésia e a que se tornara independente com o referendo de 1999. O agressor escapou. “Não havia como garantir a segurança de Xanana e deter o homem ao mesmo tempo”, conta o hoje coronel Fabiano.
A facada que podia ter mudado o destino do país de língua portuguesa foi um dos primeiros episódios da experiência timorense do coronel. Quinze dias antes, ele escapara do cerco das forças da Falintil, a guerrilha liderada por Xanana, em um dos fatos mais dramáticos do período da libertação do país.
Após salvar Xanana da facada, Fabiano se tornou, duas décadas depois, um dos responsáveis pela segurança do Palácio do Planalto e do presidente Jair Bolsonaro. “Nós fazíamos o planejamento toda vez que o Xanana ia deixar Aileu. Mas ele buscava o contato com o povo, queria abraçar as pessoas e não respeitava as nossas orientações.” Era um tempo em que milícias pró-Indonésia tentavam impor o terror aos timorenses.
Foi um país dilacerado e arrasado que Fabiano conheceu 1999. Na primeira patrulha em Díli, a capital do Timor Leste, ele viu uma picape incendiada e uma nuvem de moscas em cima do carro. No veículo estavam nove corpos decapitados, com notas de rúpias, o dinheiro indonésio, em cima. Era parte da vingança das milícias contra a população – 80% dos timorenses votaram pela independência do país após 25 anos de ocupação indonésia. “A ilha estava devastada. Tinha mais de 20 mil mortos e cabeças cortadas. A gente encontrava corpos de mulheres, crianças e idosos.”
Fabiano chegou em outubro ao Timor com outros 50 homens da Polícia do Exército. O Brasil fazia parte de um força multinacional para defender a independência do Timor. Em 18 de novembro, o tenente recebeu a ordem para assumir a segurança de Xanana. Para tanto, rumou para Aileu com sete brasileiros e dois australianos. “Às 18 horas, um dos cabos do meu grupo me abordou: ‘Tenente, tem algo errado por aqui!’.”
Uma centena de guerrilheiros da Falintil estava cercando a casa que abrigava Fabiano e sua equipe. Pelo rádio, recebeu ordens para manter a posição e soube que um batalhão australiano havia capturado um grupo armado que trajava peças de uniformes indonésios. Levados a Díli, descobriu-se que eram guerrilheiros de Xanana. Em represália, a Falintil cercou Fabiano e seus homens. “Minha missão era resistir e sobreviver.”
Fabiano distribuiu os homens pelos dez cômodos da casa. À meia-noite, surpreendeu-se pensando na família e decidiu ir ver como seus homens estavam. Encontrou um cabo sentando em um banco com um fuzil ao lado e um Novo Testamento aberto no colo. “O cabo sempre foi convicto em afirmar que era ateu. Ao me ver, ele falou que estava arrependido de seus pecados, que passaria a respeitar mais a mulher e seus filhos.”
Em seguida, achou homens calmos, mas também um australiano que mirava um guerrilheiro e repetia que ia morrer, mas mataria aquele sujeito primeiro; um cabo só de sunga, que daquele jeito acreditava conseguir correr para fugir ao cerco e um sargento com os olhos fechados, ouvindo um CD de Zeca Pagodinho. “Tenente, a gente não tem saída, e a música está me acalmando.” Fabiano respirou fundo. “Expliquei que o êxito do grupo dependia dele também.”
Do lado de fora, os guerrilheiros arrastavam facões no asfalto e davam gargalhadas. Pela manhã, o brasileiro viu a Falintil se reunir. Xanana resolveu ir para Díli com seus homens, apesar da proibição dos australianos. Tudo levava a crer que haveria combate. Mas o general australiano Peter Cosgrove resolveu não enfrentar os guerrilheiros, que entraram em Díli e chegaram a um acordo com a missão da ONU. O grupo de Fabiano foi mantido na segurança do líder guerrilheiro.
Em março de 2000, Fabiano voltou ao Brasil. Ele reveria Xanana duas vezes. Em 2001, quando o timorense visitou o país e pediu ao presidente Fernando Henrique Cardoso para rever os brasileiros que cuidaram de sua segurança. No Planalto, Xanana cumprimentou a todos, mas abraçou dois: Marcelino e Fabiano. Em 2007, em uma missão no Timor, Xanana novamente o recebeu. E recordou o dia em que a Falintil ‘tomou’ Díli. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.