A virada: Mendes trocou o celibato pela produção artesanal de cachaça e quer produzir 500 mil litros neste ano

Cachaceiro, ao contrário do que se costuma dizer, não é o qualificativo dado à pessoa que consome de forma exagerada a bebida feita a partir da cana-de-açúcar, mas, sim, a profissão de quem produz a cachaça. Nesse sentido, o empresário mineiro José Lucas Mendes de Oliveira é um cachaceiro para ninguém botar defeito. E com muito orgulho de ser chamado assim. Desde 2003, Mendes, como é mais conhecido, apostou no potencial da região de Salinas, município do extremo norte de Minas Gerais, para começar a sua produção de cachaça artesanal. Nascia aí a Tabúa, assim mesmo, com acento agudo no U. O nome vem da expressão “tá boa”, que foi mineirizada pelo empresário. “Mineirinho geralmente troca o “O” pelo U”, diz ele.

A produção da bebida nem de longe remete à vida que Mendes tinha há pouco mais de dez anos, quando era seminarista em São Paulo, na ordem de São Camilo. Dos 15 aos 26 anos, ele viveu entre devoção, preces, celibato e caridade. Após a saída do seminário, em 2000, ainda sem saber o que fazer dali para a frente, ele viu na fazenda da família – que, por sinal, foi batizada de Tabúa, uma oportunidade de resgatar a tradição regional de produzir a “marvada” e colocou as mãos na massa. O exemplo, aliás, vinha de casa. Seu avô paterno, Olímpio, produzia uma pequena quantidade da bebida desde os anos 1940 . “Ele nunca bebeu, mas conhecia cachaça boa pelo cheiro”, diz Mendes. A herança animou o jovem empresário. Com a ideia na cabeça, ele encontrou no sogro, o espanhol César Portela Vilamarin, o sócio ideal para a empreitada. Ex-executivo da Kodak, Vilamarin se encantou com a produção artesanal da bebida e apostou no negócio.

 

No início, a produção da Tabúa era feita em um pequeno espaço. Hoje, são 1.500 metros de área construída, com setor de moagem, fermentação, destilação, engarrafamento, armazenamento e escritório. Só no ano passado, a empresa produziu 400 mil litros de cachaça, das marcas Tabúa e Salideira, que renderam um faturamento em torno dos R$ 2,5 milhões. “Para este ano, queremos produzir 500 mil litros”, diz Mendes. Com esse volume, a Tabúa é uma das maiores cachaçarias artesanais do País, atrás apenas das marcas Seleta e Salinas. Atualmente, a região, autointitulada de maior polo regional da cachaça artesanal do País, conta com 25 empresas produtoras registradas, proprietárias de 52 rótulos. Juntos, elas produzem cinco milhões de litros por ano. Em todo o Estado, são mais de nove mil produtores, entre formais e informais, mas apenas 900 deles estão na regularidade. “Trazer os informais para a legalidade é um dos nossos maiores desafios”, conta Alexandre Wagner da Silva, diretor-presidente da Associação Mineira de Produtores de Cachaça de Qualidade (Ampaq).

Especial: a Tabúa Flor de Ouro é a cachaça premium da empresa, envelhecendo desde 2004

Desce mais uma: Mendes também

produz a Salideira, cujo nome é uma

fusão das palavras Salinas e saideira

A fama da região de Salinas como principal centro produtor da cachaça artesanal não ocorreu por acaso. Ali, onde o tempo parece ter preguiça de passar e os canaviais tomam conta da paisagem, é possível encontrar pequenos alambiques na beira das estradas e bares, em que se degusta qualquer uma das marcas produzidas na região. Entre os motivos que fazem a produção tão famosa em todo o Brasil está uma combinação de clima quente e solo fértil, que favorece o plantio da cana. Além disso, a baixa quantidade de chuvas auxilia no crescimento da cana-de-açúcar. Esses fatores somados resultam em um brix (que é o teor de açúcar da planta) ainda maior. “Com isso, o rendimento de cachaça em relação à cana é maior”, diz Álvaro Diego Soares, engenheiro agrônomo da Tabúa. Segundo ele, uma boa variedade de cana consegue manter um brix entre 22% e 24% durante todo o processo de produção da aguardente, que leva em média três dias. Nas primeiras 24 horas, o caldo da cana é armazenado em tonéis, onde são acrescentadas leveduras, responsáveis pela fermentação do líquido. Durante esse processo, o cheiro doce da garapa toma conta do ambiente, enquanto as leveduras transformam todo o açúcar em álcool, fazendo o líquido dentro dos tonéis de aço inox borbulhar com intensidade. “Com isso o brix vai a zero e o teor alcoólico chega a 8%”, diz Betânia Francisca dos Santos, técnica responsável pela produção da Tabúa e da Salideira.

Fresquinha: do alambique, a “marvada” sai em temperatura ambiente e vai para o tonel envelhecer

 

 

Nelson duarte:

o especialista em bebidas diz que a arte de degustar a cachaça é como degustar vinho

 

 

 

Alexandre silva:

legalizar os produtores informais é um dos desafios para organizar a cadeia produtiva

 

 

 

 

Na etapa seguinte, o vinho, como é chamado o caldo fermentado, desce por canos até os três alambiques de cobre e é aquecido a 90 graus. Ali, o produto evapora e são separados o coração, o rabo da bebida e a cabeça. “O coração é a melhor cachaça, aquela que não dá dor de cabeça no dia seguinte”, conta Mendes. E é essa a porção que, transformada em líquido novamente, é envasada pela Tabúa. A cabeça e o rabo da bebida, considerados de qualidade inferior, são usados para a produção de álcool, que abastece dois carros da empresa e gera redução de custos. O bagaço da cana também é reaproveitado para a alimentação dos bovinos da fazenda, que, por sua vez, geram esterco para a adubação dos canaviais.

Depois de pronta, a cachaça é armazenada em tonéis para envelhecimento por pelo menos um ano. Parte do aroma e do sabor, assim como no caso dos vinhos, é diretamente relacionada ao tipo de madeira com que o tonel foi feito. Na Tabúa, toda a produção passa primeiramente por um tonel de jequitibá. “Essa madeira conserta a cachaça, dá equilíbrio a ela”, diz Mendes. Depois, as bebidas podem ser armazenadas também em tonéis de bálsamo e umburana por tempo indeterminado. A cachaça mais nobre da Tabúa está envelhecendo em um tonel de bálsamo de dez mil litros desde 2004. “É o nosso produto premium, edição de ouro, que tem um selo do Inmetro na garrafa”, diz Mendes. O preço médio de venda da garrafa de 700 ml da Tabúa Flor de Ouro é de R$ 20.

 

Haja paladar: na região de Salinas, são 25 produtores legalizados, com 52 marcas no mercado

Quem adora bebericar as cachaças fabricadas por Mendes e por seus colegas de Salinas é o cachaçólogo Nelson Duarte. Ele vem a ser o diretor do Consulado da Cachaça, em São Paulo, empresa especializada em consultoria e gestão de produção, padronização, treinamento de profissionais e comercialização do produto. “Degustar a cachaça requer tanta atenção quanto degustar um bom vinho, é uma arte prazerosa”, diz Duarte, que participou do 10º Festival Mundial da Cachaça, realizado em Salinas, no fim de julho. Ali, todos os 25 associados da Associação dos Produtores Artesanais de Cachaça de Salinas (Apacs) expuseram seus produtos e puderam trocar experiências com visitantes de todo o Brasil. Entre os expositores estava a família Santiago, proprietária da cachaça Havanna, considerada uma das mais caras do Brasil e cuja garrafa é vendida por no mínimo R$ 300. A produção, iniciada há décadas, é gerida pelos filhos e netos do fundador, o cachaceiro Anísio Santiago, já falecido. “É um processo artesanal, produzimos apenas 15 mil litros por ano”, diz Cléber Santiago, neto de Anísio e responsável pela produção no alambique.

Para organizar a produção na região e garantir mais qualidade para a cachaça “made in Salinas”, os produtores, por meio da Apacs e da Ampaq, se organizaram para obter o registro de indicação geográfica da produção. Com isso, os produtos terão indicação de procedência, dando ainda mais visibilidade para a região. Além disso, a associação trabalha em uma campanha institucional para agregar mais valor ao produto.

 

Álvaro soares:

as condições climáticas da região contribuem para o maior teor de açúcar da cana salinense

 

 

 

Em família: Cléber e Oswaldo Santiago, herdeiros do fundador da cachaça Havanna, levam adiante a tradição artesanal