08/10/2025 - 15:13
Moçambique e Brasil têm semelhanças quando o tema é violência contra mulheres. Para a escritora, jornalista, rapper e e ativista moçambicana Énia Lipanga essas semelhanças ficam mais evidentes nas áreas periféricas dos dois países e no seu território ainda se agrava pela questão cultural que atravessa a ancestralidade. Énia Lipanga contou que não é incomum as mulheres aceitarem a violência no seu país por terem recebido ao longo da vida a informação de “respeitar” a figura do homem. A ativista se indigna que o ditado antigo “Um homem que não te bate não te ama”, ainda hoje seja reproduzido nas áreas rurais.
“Se temos um ditado dessa dimensão, imagine como é a cabeça de uma mulher que ouve esse ditado através da sua bisavó, da sua avó, da sua mãe. É óbvio que se essa mulher for mãe de uma menina, vai replicar esta norma, este ditado nacional. Temos também estas normas que são nocivas e vamos combatendo-as e ainda assim preservando a nossa cultura. É um caminho controverso porque existe também uma necessidade de países africanos preservarem sua cultura, mas para mim que sejam normas culturais que não vão ferir a dignidade humana”, defendeu em entrevista à Agência Brasil.
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De acordo com a escritora, existem muitas zonas rurais em Moçambique e quanto mais em zona rural esta mulher estiver, será pior, porque em geral está em uma condição de não ser escolarizada.
“São mulheres que não têm acesso formal à educação. Considero as mulheres moçambicanas muito inteligentes, as nossas matriarcas são preservadoras de grande valores passados de geração a geração através da oralidade e das nossas conversas em volta da fogueira, no entanto, muitas delas não têm acesso à escolaridade e depois temos a questão das normas sociais e da preservação da cultura. Existe também muita frequência da violência que é confundida com cultura. Muitas mulheres preferem preservar a violência em nome da cultura”, completou.
Conforme a escritora, na literatura é possível aproximar as semelhanças entre os dois países sem mesmo estar presente em cada um deles. Citou, como exemplo, o livro O Crime do Cais do Valongo, da escritora carioca Eliane Alves, cuja história começa em Moçambique e chega ao Rio, com personagens moçambicanas, sem que a autora tenha viajado para aquele país. O Cais do Valongo foi porta de entrada de pessoas escravizadas no Brasil.
“É surreal como se consegue perceber a construção das personagens e ver pessoas semelhantes a ti”, disse, acrescentando que costuma acompanhar as lutas femininas no Brasil.
“A Djamila Ribeiro é uma inspiração pela luta das mulheres feministas negras. Em Moçambique nós vamos olhando essas referências, embora sejam de fora, como um espelho que podemos aprender e replicar. Claro, que levamos em conta o nosso contexto”, pontuou.
Segundo a escritora, questões ligadas à violência acabam sendo temas muito presentes na sua literatura. “Falo das violências visíveis, do assédio, de questões do abandono, falo do corpo e todas exatas formas de violências que as mulheres moçambicanas, em particular, sofrem”,
Debate
Questões como estas estarão na primeira edição da Roda Transatlântica – Mulher, Literatura e Violência, que vai ocorrer, nesta quarta-feira (8), às 19h, na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, zona sul do Rio. Énia Lipanga vai participar do debate com a doutora em Ciências da Literatura, roteirista, crítica literária e a primeira deputada estadual transexual eleita para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Dani Balbi (PcdoB-RJ), que em 2025, lançou com a Editora Multifoco o Selo Dabi Balbi para publicações de temática LGBTQIAPN+. A moderadora do debate, será a pesquisadora bolsista da CAPES, doutoranda em Literaturas Africanas pela USP e co-autora de quatro obras, Carla Santos.
A intenção dos organizadores do encontro ao reunir na Roda Transatlântica, escritoras que transformam suas vivências em literatura e ação política é inaugurar um espaço de escuta e de diálogo para fazer conexão das experiências femininas e literárias, reforçando redes de apoio, inclusão e criação.
Para a ativista moçambicana, é importante trazer reflexões entre a literatura e a violência contra mulheres e fazer essa troca de informações com o Brasil, que considera um país-irmão e ainda poder ter ao seu lado Dani Balbi.
“Estar com a Dani para mim vai ser oportunidade dessa troca, porque ambas somos vozes muito comprometidas com questões ligadas à transformação e a quebrar barreiras. Quero muito que esse debate tenha esse cunho de trazer Moçambique, aquilo que é a realidade moçambicana e a forma como eu em particular uso estas violências contra a mulher para trilhar a minha literatura”, afirmou.
Énia Lipanga contou que muitas vezes não consegue escrever sobre outras coisas, porque para além de ser escritora é ativista em direitos humanos nesta área ligada à mulher.
“Acabo sendo recoletora das feridas. Existe uma expectativa muito grande em relação às mulheres que me leem de que eu faça alguma coisa com as suas histórias. Então, dentro da minha literatura tenho as minhas próprias histórias pessoais mais as histórias de mulheres moçambicanas que me confiam esse dever de perpetuar as suas vozes e as suas lutas e também de se esperar que haja uma transformação através daquilo que escrevo”, apontou.
A história da sua pré-adolescência foi determinante para ter interesse em escrever sobre o tema da violência. Énia lembrou que convivia com outras meninas que não tinham acesso à escolaridade, simplesmente porque eram meninas.
“Comecei a despertar e a escrever sobre a necessidade de todas as meninas usufruírem desse direito à educação. De lá para cá nunca mais parei e lá se vão 20 anos que trabalho esta temática. É óbvio que na medida em que fui crescendo, fui me transformando em outras mulheres e vivenciando, na própria pele, questões relacionadas à violência. Desde a pré-adolescência é um tema que me abala tanto e me envolve pelo fato de ser mulher e, principalmente, ser mulher moçambicana”, indicou.
Com a sua atuação, conforme explicou, tornou-se uma espécie de linha de denúncia para mulheres que se sentem à vontade de compartilhar suas histórias com a escritora ou de outras que precisam de apoio, social, psicológico ou jurídico. É uma ligação entre o meu ativismo social e também a minha literatura. Em termos de transformações ligadas à própria literatura, trago muito a abordagem das liberdades femininas, do corpo, do orgasmo. Costumo dialogar com minhas leitoras sobre estas temáticas e também com leitores, homens que se identificam e acham que é uma bandeira pertinente em um país patriarcal e onde temos muitas violências baseadas em gênero”, comentou.
Conscientização
Para Dani Balbi, é possível criar experiências com a possibilidade de conscientização a partir do poder que a arte tem e citou um dos livros. Mãe Preta Reincidente [livro com o qual fez a estreia na dramaturgia] trata especialmente da violência que o estado pratica em mulheres que passam pelo sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro de diversas formas. Vou levar [ao debate] os relatos dessas mulheres, de diversas violações, que elas sofreram a partir da perspectiva da mulher negra favelada contraditória e complexa que é a minha realidade e das minhas iguais”, informou em áudio para perguntas encaminhadas pela reportagem da Agência Brasil.
A parlamentar considera que, pelo lado lúdico, a literatura permite o florescimento da consciência dos males que este tipo de violência provoca em mulheres. Dani Balbi começou a atuar nestas questões no movimento estudantil, mas o tema da violência contra as mulheres ficou mais forte quando ingressou na União Brasileira de Mulheres e se destacou para articular nacionalmente percebendo as diversas formas de violações que as mulheres sofrem. “No espaço público, no trabalho, domesticamente, que impactam na emancipação e na capacidade dessa mulher se afirmar e que podem levar à morte”, concluiu.