O dia 31 de março amanheceu quente em Cáceres, município encravado no Pantanal, uma região de pecuária fortíssima, na qual o rebanho ultrapassa um milhão de animais, o maior de Mato Grosso. Na fazenda Ressaca, que pertence ao empresário gaúcho Pedro Grendene, dono do grupo calçadista Vulcabrás/Azaléia, uma potência que faturou R$ 1,5 bilhão, em 2014, a manhã calorenta em nada lembrava a rotina modorrenta costumeira da propriedade. Nesse dia, a calmaria dos peões na lida dos 30 mil bovinos foi quebrada logo cedo por cerca de 500 pessoas recebidas por Grendene para um dia de campo.

Mas, em vez do gado, os convidados estavam mais interessados em ver colhedoras de soja trabalhando no campo, uma cena rara para uma região como o Pantanal, de alma boiadeira. E viram mais do que isso. O evento marcou a adesão definitiva da propriedade ao chamado sistema de Integração Lavoura-Pecuária (ILP), com um desafio que raras fazendas têm nos dias atuais: produzir soja em uma região que ainda está fora do mapa nacional da oleaginosa. “Todo empreendimento agrícola precisa se modernizar, caso contrário não sobrevive”, disse Grenden à DINHEIRO RURAL. “Comecei a fazer integração lavoura-pecuária porque é o que existe de mais avançado no agronegócio, ao valorizar a terra e rentabilizar a fazenda.”

A Ressaca, uma propriedade de 34 mil hectares, que faturou com a pecuária um total de R$ 36 milhões nos dois últimos anos, cultivou na safra de 2015 mil hectares de soja, cuja produtividade foi de 56 sacas por hectare, mas que em alguns talhões chegaram a até 73 sacas, volume comparável à produção das melhores terras do País. “Esta safra foi um teste definitivo para a nossa integração lavoura-pecuária, porque hoje há tecnologias que permitem o cultivo de soja de ciclos mais curtos e com menos riscos de perder a colheita”, afirma Grendene. “Não devemos ter dúvida de que a soja chegou para ficar e com ela vamos impulsionar a criação de gado.” A conta é simples. Atualmente, a lotação dos pastos na fazenda Ressaca é de 1,5 unidade animal (UA) por hectare. Na pecuária, o conceito de uma UA refere-se a um animal com 450 quilos de peso vivo. No entanto, nas áreas de pastos, que são cultivadas com grãos, entre os meses de novembro a março, quando voltam a ser utilizadas como pastagem, exibem um capim de excelente qualidade nos demais meses do ano. Com isso, a lotação dos pastos pode ir para cinco UA por hectare. Ilson Correa, diretor da Agropecuária Grendene, que inclui outras propriedades rurais, além da Ressaca, acredita que a fazenda ultrapassará essa média de lotação, podendo chegar a oito UA por hectare. “Nosso plano é usar a irrigação, nos próximos anos, para otimizar ainda mais a integração”, diz Correa. “Vamos produzir mais arrobas por hectare do que se tivéssemos apenas a criação de gado durante o ano todo.”


“Vamos produzir   mais arrobas por hectare do que se tivéssemos apenas a  criação de gado durante o ano todo” Ilson Correa,  diretor da fazenda Ressaca, com  touros que serão vendidos em leilão

Com pastos em sistema rotacionado, a criação de bovinos nas áreas de agricultura pode render 12 arrobas de carne por hectare/ano, o triplo da média nacional. De acordo com Grendene, o grande desafio da pecuária brasileira é justamente melhorar o desfrute do rebanho, que é a capacidade de gerar excedente. “Se você tem na fazenda o equivalente a 50 mil arrobas circulando todos os dias nos pastos, e consegue vender 20 mil arrobas para os frigoríficos a cada ano, seu desfrute é de 40%”, diz Grendene. “É dificílimo de conseguir, são números que ainda estão por acontecer entre nós, mas precisamos persegui-los e a agricultura pode nos ajudar.” O Brasil, de acordo com o IBGE, possui um rebanho bovino de cerca de 200 milhões de animais e um desfrute que tem ficado entre 16% e 19%, nos últimos anos. Nos Estados Unidos e na Austrália, por exemplo, o desfrute tem sido de cerca de 38% e de 31%, respectivamente.

O rebanho de Grendene é de 26 mil bovinos comerciais para a produção de carne, dos quais 16 mil são fêmeas na reprodução. Nesta safra, com o preço do bezerro nas alturas, a fazenda vendeu cinco mil animais após a desmama. Outros três mil que estão nos pastos, a maior parte fêmeas de descarte, seguirão para o frigorífico. A fazenda também possui um confinamento para alojar até 12 mil animais, que neste ano está desativado por causa da venda dos bezerros. Grendene possui ainda um rebanho de quatro mil fêmeas de nelore Puras de Origem (PO), num programa de melhoramento genético para produzir mil touros por ano. O criador, que já é hoje um dos maiores vendedores de touros da raça no País, quer chegar a dois mil reprodutores colocados no mercado. “Com bovinos melhorados é possível fazer uma pecuária comercial de ciclo curto e abater animais cada vez mais jovens”, diz Grendene. “Hoje, gado de qualidade superior e agricultura é um perfeito casamento de conveniência.”

Na agricultura, o plano para a Ressaca é cultivar 2,5 mil hectares na safra 2015/2016, que será plantada no final deste ano, e cinco mil hectares na safra 2016/2017, área que Grendene acredita ser ideal para o seu projeto. Para iniciar o cultivo da soja foram investidos R$ 3 milhões na compra de plantadeiras, implementos e alguns tratores, deixando a colheita como uma atividade terceirizada, por enquanto. “A gente está plantando soja com a firme expectativa de ganhar dinheiro com o seu cultivo”, diz. “Por isso, estamos planejando os gastos.” De acordo com o empresário, ninguém pode entrar em um ramo de negócio para que ele sirva de muleta, visando rentabilizar outro negócio. “Isso é muito perigoso”, afirma Grendene. “Na integração lavoura-pecuária, o que nos anima é que vamos ganhar dinheiro com a agricultura e, adicionalmente, sobrará para a pecuária um grande benefício em terras que chamamos de mansas, limpas e bem adubadas.”

Segundo o industrial e produtor rural, até bem poucos anos atrás, esse planejamento seria impossível. Além de estar encravada em uma região conhecida pelas altas temperaturas, a fazenda Ressaca fica a uma altitude média de 180 metros em relação ao nível do mar, condição que a tornava inadequada para o cultivo de soja. Hoje, com variedades de sementes adaptadas a um clima mais quente e seco, a oleaginosa pode mudar o perfil do agronegócio nessas terras. “A integração é uma opção ótima para o pecuarista porque há muita assistência técnica disponível, assessoria, instituições e organizações de todo tipo que podem te ajudar”, afirma Grendene.


“Quando cheguei em cáceres, morava numa casinha de madeira, tinha um tratorzinho e uma colhedeira de quatro cilindros e sem capota. Hoje, tenho máquinas de trezentos cavalos” Hélio Cunha, da fazenda Bom Tempo, com o filho Emerson

DESBRAVADORES Em Cáceres, além de Grendene, apenas três produtores estão plantando soja neste ano, mas em áreas mais elevadas que a fazenda Ressaca. Um deles, Hélio Cunha, da fazenda Bom Tempo, tem sido uma espécie de mentor de seus colegas. Ao contrário dos demais, que sempre foram fortes na pecuária, Cunha sempre foi agricultor. Na década de 1990, ele já cultivava soja no Paraná, no Piauí e no norte de Mato Grosso, em pequenas áreas próprias ou arrendadas, até que em 2004 conseguiu comprar 2,5 mil hectares em Cáceres. “Consegui uma área mais alta, a 485 metros do nível do mar e, por isso, já vim para o município sabendo o que iria fazer”, diz Cunha. “Optei por Cáceres porque, assim, poderia comprar mais terras, já que elas são mais baratas que nas regiões de agricultura forte.”


“A região já tentou ser agrícola nos anos 1990, MAS OS PROJETOS Não vingaram. agora pode ser diferente porque há tecnologia  e gente de peso acreditando na agricultura” Francis Maris Cruz, prefeito de Cáceres

Por dois anos, a lavoura de 1,6 mil hectares da Bom Tempo rendeu muito pouco, mas Cunha não desistiu. “As pessoas achavam que eu estava louco e diziam que não iria me sair bem, mas eu sabia que estava certo”, afirma o produtor. Hoje, a sua média de produção é de 66 sacas por hectare e caminha para a média de 70 sacas. Nas duas últimas safras, Cunha vem testando pelo menos 15 variedades de sementes da oleaginosa e já separou quatro que se adaptam à sua propriedade. Em Cáceres, o produtor se tornou uma referência no cultivo de soja porque mudou o sistema de cultivo. A terra mais compacta e argilosa do Pantanal exige um manejo diferente no plantio direto, para que as raízes da planta se aprofundem no solo. Além disso, para resistir à seca, a palhada de cobertura do solo precisa ser mais densa que em outras regiões.

Grendene visitou a fazenda Bom Tempo algumas vezes, em busca de informações. “Eu disse para ele ir em frente porque também na Ressaca a soja daria certo”, afirma Cunha. “Quando cheguei em Cáceres, morava numa casinha de madeira, tinha um tratorzinho e uma colhedeira de quatro cilindros e sem capota”, diz Cunha. Hoje tenho máquinas de 300 cavalos.” Atualmente, a fazenda Bom Tempo produz soja, milho, milheto e sorgo. Também fabrica ração animal e, há dois anos, começou a engordar 500 bois por ano em sistema de integração, fazendo o caminho inverso. A receita no ano passado foi de R$ 8 milhões, dos quais R$ 6 milhões vieram da soja. “Agora, quero aumentar a minha área de pecuária para engordar boi e, quem sabe um dia, ser também criador de gado”, diz Cunha, que cuida do cultivo das lavouras, enquanto o filho Emerson fica na administração dos negócios. “Cáceres se tornou a nossa casa, definitivamente”, diz Emerson. “É aqui que vamos investir.”


“Num raio mais amplo, de até 400 quilômetros,a produção poderá mais do que dobrar das 16,5 milhões de toneladas de grãos de hoje para 42,5 milhões de toneladas” Rui Prado,  presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de MT

Para o prefeito de Cáceres, Francis Maris Cruz (PMDB), que participou do dia de campo da fazenda Ressaca, o projeto de Grendene pode funcionar como um importante instrumento de marketing para impulsionar os negócios no campo, no município. “A região já tentou ser agrícola nos anos 1990, mas os projetos não vingaram”, afirma Maris Cruz. “Agora pode ser diferente, porque há tecnologia e gente de peso acreditando na agricultura.”

O prefeito, que também é produtor rural e dono de um rebanho de 20 mil animais para abate e venda de touros, diz que Cáceres vai servir de modelo para a região porque as áreas de vocação para a agricultura, necessariamente, precisam ser muito produtivas para compensar aquelas nas quais não será possível cultivar grãos. De acordo com ele, dos 24 mil km2 de território, 30% são tomados por morros e 58% são formados por áreas alagáveis do bioma Pantanal. “As lavouras serão plantadas nas furnas, que são as áreas planas entre os morros”.


“Com o porto de santo antônio das lendas, os produtores que investirem em lavouras  terão um canal de escoamento competitivo através da hidrovia do rio Paraguai” Carlos Fávaro, vice governador de Mato Grosso

A experiência do plantio de soja, integrado à pecuária, que começa a acontecer em Cáceres, está despertando o interesse de localidades vizinhas, como Vila Bela, Pontes e Lacerda, Porto Esperidião, Mirassol D’Oeste, Salto do Céu e Lambari D’Oeste. Não por acaso, Grendene recebeu na fazenda Ressaca um grupo de 15 prefeitos. Nos últimos tempos, tem ganhado força um movimento liderado por políticos e produtores para que o governo do Estado invista na criação de uma Zona de Processamento e Exportação  (ZPE), através de incentivos fiscais, e na construção do porto de Santo Antônio das Lendas, no rio Paraguai. “Com o porto, os produtores que investirem em lavouras terão um canal de escoamento competitivo, através da hidrovia do rio Paraguai”, diz Carlos Fávaro, vice-governador do Estado, que até o ano passado era presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT). “É por isso que sistemas nos quais há um aumento de produção de grãos e gado chamam a atenção.” Para Fávaro, o pioneirismo de Grendene em plantar soja em áreas de terras baixas é um marco no agronegócio. “A região de Cáceres, que estava esquecida pela agricultura, é a nova fronteira do desenvolvimento de Mato Grosso”, diz Fávaro.

Um estudo realizado pela Federação de Agricultura e Pecuária do Estado (Famato) mostra que com a instalação do porto de Santo Antônio das Lendas, o potencial produtivo de grãos sob a influência de Cáceres se torna gigantesco. Em um raio de até 100 quilômetros do terminal, a atual produção de soja e milho, que é de 100 mil toneladas, pode chegar a 1,6 milhão de toneladas. “Num raio mais amplo, de até 400 quilômetros, a produção poderá mais do que dobrar das 16,5 milhões de toneladas de grãos de hoje para 42,5 milhões de toneladas”, diz Rui Prado, presidente da Famato. Além disso, o escoamento de soja pelo rio Paraguai é competitivo, principalmente, em relação aos portos de Santos e Paranaguá (confira quadro), eliminando os custos representados pelo transporte por rodovia até o embarque.

Sustentabilidade O cultivo da soja nas terras secas e mais altas do Pantanal, região que ocupa uma área total de 250 mil km2, dos quais 150 mil km2 formam uma das maiores extensões de terras úmidas e contínuas do planeta. Aliada ao aumento da produção pecuária, a oleaginosa deverá trazer riquezas e estimular a economia, como nunca ocorreu na história de Mato Grosso. Além disso, a lavoura bem manejada, ajuda a segurar as águas das chuvas no solo, contribuindo para minimizar as frequentes e rápidas cheias nos rios pantaneiros em parte do ano. “A fazenda Ressaca está mostrando que a integração traz uma revolução ao campo porque não muda a vocação pecuária da região”, afirma. “É hora de aproveitar, porque um hectare de terra em Cáceres ainda está custando em torno de 100 sacas de soja, enquanto que nos principais polos agrícolas do Estado, como Lucas do Rio Verde e Sorriso são necessárias mil sacas para comprar um hectare.”

Grendene, que ao final do dia de campo, se despedia de seus convidados avisando que as porteiras da fazenda Ressaca continuavam abertas, dava um último recado como empresário, dizendo que se uma fazenda não der lucro ela não tem razão de sua existência. “O que educa as pessoas são as empresas bem sucedidas”, diz Grendene. “A integração lavoura-pecuária gera riqueza por todos os lados e um ambiente propício ao desenvolvimento.”