O agrônomo Márcio Nery, diretor-geral da empresa de inseminação artificial ABS Pecplan, com sede em Uberaba, no Triângulo Mineiro, teve de romper uma tradição em 2012. Todos os anos, a companhia, controlada pela britânica Genus, despacha um funcionário para o Exterior. No caso, um veterinário brasileiro especializado em genética bovina passa alguns meses estudando e trabalhando em uma unidade do grupo nos Estados Unidos. No ano passado, nenhum profissional carimbou o passaporte. O motivo não foi uma mudança na estratégia da matriz, mas a dificuldade da equipe de recursos humanos de Nery em conseguir contratar no mercado um técnico que pudesse substituir o viajante. “Simplesmente, não encontramos uma pessoa com o perfil desejado cuja pretensão salarial pudéssemos atender”, diz Nery. “Não havia pessoas disponíveis, e as que se dispunham a trabalhar conosco pediam salários muito acima do mercado.” Neste ano a situação melhorou um pouco. Nery conseguiu contratar três funcionários, um gerente e dois técnicos, para o departamento de inseminação de gado leiteiro. “Recebemos mais de 50 inscrições e conseguimos escolher os melhores”, diz ele. Mas o executivo sabe que essa tranquilidade pode acabar a qualquer momento. A oferta de bons profissionais flutua, como ocorre com os ciclos do agronegócio. “Hoje está bom, mas não temos nenhuma garantia de que daqui a dez meses não haja dificuldades de novo”, diz Nery. “A escassez de mão de obra é um problema estrutural, crônico.”

Nery não está sozinho. As dificuldades da ABS Pecplan são compartilhadas por gigantes do agronegócio brasileiro, como Bayer, Sinagro, AGCO e São Martinho, entre outras. Essas companhias participaram de uma pesquisa realizada pela empresa paulista de contratação de executivos Fesa, promovida com exclusividade para DINHEIRO RURAL com 23 grandes companhias com receitas entre R$ 1 bilhão e R$ 20 bilhões. “No mercado brasileiro, o apagão de talentos também atinge o agronegócio”, afirma Carlos Guilherme Nosé, sócio da Fesa responsável pelo agronegócio e coordenador da pesquisa. “A saída, com frequência, para contornar esse entrave é buscar executivos em outros mercados.”A pesquisa registrou que 21% das empresas consultadas fazem buscas na indústria de TI/Telecom, 19% garimpam na de mineração e 17% recrutam no setor de alimentos. “O agronegócio pode perder o bonde porque, além de ter saído tarde em relação a outros setores, na busca por talento não vai atrás deles na intensidade que o mercado exige.”

Não por acaso, ao lado dos gargalos da infraestrutura, que atrasam o escoamento da produção, elevam custos e dizimam as margens de lucro, os executivos e empresários do agronegócio alinham entre seus demônios a escassez de mão de obra qualificada. “Achar gente boa para trabalhar é difícil, os talentos têm de ser encontrados, formados e, principalmente, retidos”, diz Gerhard Bohne, diretor das operações brasileiras da alemã Bayer CropScience. Todos os anos, Bohne dedica boa parte de seu tempo a visitar as melhores universidades para atrair recém-formados. “O que antes era atividade agrícola hoje se tornou agronegócio, e isso traz a necessidade de contratação de um pessoal mais qualificado”, diz. Recrutar, porém, é uma pequena parte do processo. “Trabalhamos com jovens competentes e com muita iniciativa que podem encontrar empregos em vários outros lugares”, afirma o executivo.

Bohne enfrenta, diariamente, um duplo desafio. Por um lado, ele tem de treinar não só competências de negociação como também atitude, evitando que o jovem contratado cumprimente o cliente da mesma forma que saúda os conhecidos do Facebook. Por outro, ele precisa manter um ambiente de trabalho que proporcione desafios, recompensas e oportunidades de crescimento, sob pena de perder os funcionários mais promissores. “Quando um de meus gerentes regionais é procurado por um trainee dizendo que recebeu uma proposta da concorrência, minha orientação é que o gerente ligue para o meu celular na mesma hora”, diz Bohne. “Temos de fazer uma contraproposta no mesmo dia, na hora, senão perdemos o profissional.” Segundo ele, está difícil contratar gente para ocupar vagas em vários departamentos. Como mostra a pesquisa da Fesa, as áreas que apresentam maior dificuldade para contratação, em razão da escassez de oferta, são as técnicas (25%), finanças (20%), vendas (18%) e suprimentos (14%). Muitas vezes, é difícil contratar o profissional adequado, no momento certo, para o serviço que precisa ser feito”, diz.

EXECUTIVOS MULTIFUNCIONAIS

A logística é o exemplo mais visível dessa necessidade de pessoas. Para qualquer exportador, a visão da rodovia Cônego Domenico Rangoni na manhã do sábado, 2 de março, era desesperadora. A estrada atravessa o litoral norte de São Paulo a partir do sistema Anchieta-Imigrantes, e é a principal ligação para os caminhões que saem do interior paulista ou do Centro-Oeste, e se dirigem ao porto de Santos. Naquele fim de semana, os quase 20 quilômetros que separam a pista da Imigrantes dos terminais portuários estavam tomados por uma fila interminável de veículos pesados e caminhoneiros estressados. “Estou aqui desde quinta-feira, preciso descarregar a soja que trouxe de Mato Grosso”, dizia o motorista autônomo José Américo dos Santos, paulista de São José do Rio Preto. Deses– perançado, ele coçava a cabeça ao contemplar o engarrafamento. “O pior é que, com esse atraso, vou ter de pegar outra carga direto, sem tempo nem para ver a família.”

O que é um aborrecimento para o caminhoneiro Santos é um pesadelo para Marco Antônio Vimercati, fundador e presidente do Grupo Sinagro. Criado há mais de uma década, o grupo de Primavera do Leste, em Mato Grosso, com um faturamento de pouco mais de R$ 1 bilhão, em 2012, dedica-se à distribuição de insumos e produtos agropecuários, além de cultivar soja, milho e algodão. Uma das principais preocupações de Vimercati é a logística. Como em todas as commodities, em que a margem de lucro é baixa, a diferença entre o azul e o vermelho na última linha do balanço depende da capacidade de se manter os custos do transporte baixos. Caminhão parado é gasto desnecessário, algo mortal nesse tipo de negócio. “Se eu não evitar esses atrasos, o lucro fica na estrada”, diz ele. Para contornar problemas desse tipo, empresas como a presidida por Vimercati têm buscado profissionais que sejam capazes de, entre outros talentos, saber driblar os gargalos da infraestrutura, além de dominar as finanças e os macetes do comércio internacional. “Preciso de gente que entenda de logística e de contabilidade, seja capaz de ler um balanço e também de manter relacionamentos de longo prazo com o cliente”, diz ele. Em outras palavras: ele quer executivos multifuncionais.

Mas não é só isso. Para Nosé, o mercado brasileiro tem uma escassez natural de pessoas qualificadas, mas o agronegócio enfrenta algumas dificuldades adicionais. A maior delas, a seu ver, é que o setor está atravessando um movimento maciço de profissionalização, que abarca muitas empresas de vários segmentos. “O empresário que começou do zero há 20 anos e construiu uma empresa que fatura R$ 1 bilhão sabe que chegou ao limite de suas capacidades”, diz Nosé. “Se quiser fazer a empresa faturar R$ 5 bilhões, abrir capital, ou comprar uma filial no Exterior, ele terá de investir em governança, transparência e, principalmente, em gestão.”

Um bom exemplo é o do executivo Fábio Venturelli, presidente do grupo São Martinho, controlado pela família Ometto. Depois de 22 anos na Dow Chemical, ele deixou um cargo executivo de primeiro escalão nos Estados Unidos, atraído pelas oportunidades do agronegócio brasileiro. “O modelo de administração familiar está dando lugar a gestões profissionalizadas”, diz Venturelli. “Essa transformação está criando vagas de comando e oportunidades que não existem em outras áreas da economia.” Venturelli, porém, está ciente de que seu caso pessoal é antes exceção do que norma. “Quando busco um executivo para um cargo de comando, não olho para sua formação nem sua trajetória, mas suas qualidades individuais. Busco sempre alguém que gosta do caos, que não gosta de rotina, que está pronto para o desafio e para empreender.”

SINUCA DE BICO

Nesse ponto os CEOs do agronegócio se deparam com uma sinuca de bico. Hoje, o principal atrativo das companhias do setor são as fortes possibilidades de crescimento e o fato de que o campo é mais resistente às crises, apesar das oscilações de preço do mercado internacional. Por isso mesmo, uma das competências mais requisitadas é a capacidade de entender a dinâmica do mercado internacional de commodities. Os preços de boa parte dos produtos brasileiros são definidos em Nova York ou em Chicago, daí a necessidade de saber quando vender e quando segurar a produção no estoque. O problema, porém, é que as posições oferecidas para esses executivos costumam ser menos atraentes do que cargos equivalentes em empresas de consumo, bancos ou mesmo consultorias. “A principal dificuldade é que muitas empresas ficam longe demais dos grandes centros”, diz Nosé. “Para concordar em levar a família para uma cidade distante das capitais, o candidato exige mais dinheiro e mais benefícios, e mesmo assim muitos não aceitam, com frequência por pressão das mulheres, que não querem ficar longe de parentes.”

Vimercati, da Sinagro, tem sentido esse problema na carne. “Estamos tentando contratar um executivo financeiro há mais de um ano, mas, para vir para o leste de Mato Grosso, os candidatos pedem salários muito altos”, diz ele. Exigências de salários até 25% superiores ao de um cargo equivalente em uma grande cidade, além de benefícios como passagem aérea mensal para a cidade de origem para visitar a família, acabam tornando o profissional caro demais. Outra dificuldade é que o executivo a ser recrutado pelo agronegócio tem um perfil muito diferente do de quem vai trabalhar em outras áreas. O profissional não pode ter nenhum prurido em colocar a mão na massa. “Essas empresas não buscam quem almeja ficar no ar condicionado do escritório, respondendo a e-mails e fazendo planilha”, diz Nosé.

O caso da Bayer CropScience é uma prova cabal disso. Quando assumiu a empresa, Bohne encontrou uma estrutura com 15 escritórios regionais, cada qual com seu gerente. Sua primeira medida foi desmontar essa estrutura. “Nossos gerentes perdiam muito tempo em tarefas que não agregavam valor, como cuidar do pagamento do aluguel e fiscalizar se os faxineiros estavam limpando o escritório, quando deveriam estar no campo, atendendo os clientes”, diz Bohne. Ele fechou os escritórios e entregou tablets, telefones celulares e laptops para o pessoal da força de vendas. “No começo a reclamação foi geral, pois as pessoas não estavam acostumadas a trabalhar sem uma mesa ou uma sala, mas agora todo mundo gosta do novo esquema”, diz ele. “Acabamos com muita burocracia.” Bom para a empresa, mas um entrave adicional na hora de contratar.

Sheila Fonseca, diretora de recursos humanos da fabricante de máquinas agrícolas AGCO, conhece bem essa situação. “Temos cinco vagas de comando em aberto e não estamos conseguindo preenchê-las”, diz. “ Há muita dificuldade para encontrar profissionais com especialização em nosso setor, pois em geral os profissionais preferem trabalhar nas grandes cidades.” Por isso, executivos como o inglês Ian Hill, presidente da Agropecuária Jacarezinho, controlada pelo grupo Grendene, com fazendas no interior de São Paulo e no oeste baiano, não tem pruridos em recontratar profissionais perdidos para a concorrência. “Alguns de nossos gerentes são atraídos por outras empresas, mas voltam para cá dois ou três anos depois”, diz Hill. “Cerca de 80% deles fizeram carreira na Jacarezinho.”

Segundo mostra a pesquisa realizada pela Fesa-DINHEIRO RURAL, 46% das contratações previstas (ou desejadas) pelas empresas do agronegócio neste ano são para preencher vagas no departamento comercial, e 21% são para logística. Prova dos novos tempos, um dos profissionais mais desejados é o diretor de RH (veja o quadro à página 40). “Aquela tradição de o dono fazer todas as vendas está dando espaço para profissionais de perfil mais técnico”, diz Nosé. Na Bayer, por exemplo, a meta de Bohne é contratar representantes comerciais que consigam resolver os problemas do cliente, e não apenas vender os produtos da empresa. “Meu vendedor acaba se tornando um consultor informal”, diz Bohne. “O cliente pergunta o que plantar, como usar as máquinas de maneira mais produtiva e pede até indicações na hora de contratar pessoas.” Vimercati, da Sinagro, segue a mesma cartilha. “Procuro pessoas que saibam cultivar relacionamentos”, diz ele. Relacionamento, aqui, não é uma conversa agradável na hora do cafezinho, mas a capacidade de, por exemplo, ajudar na regulagem de uma colheitadeira. “Os produtos são commodities e a concorrência atua com muito foco no preço”, diz Vimercati. “Por isso temos de agregar valor por meio dos serviços.”

A necessidade de especialização e a variação das tecnologias vão atrair mais profissionais de outras áreas, diz Susana Falchi, presidente da consultoria paulista de recursos humanos HSD. Segundo Susana, a modernização tem obrigado os empresários rurais a buscar profissionais em áreas nas quais, num primeiro momento, jamais se pensaria em qualquer ligação ou atração pelo agronegócio. Ela cita como exemplo uma cooperativa leiteira pernambucana que contratou um geógrafo para realizar estudos de solo e indicar qual a melhor localização de pastos e currais. “Casos como esse vão se multiplicar”, diz ela.